Aquele meme do cão numa casa a arder

Um cartoon que personifica a resignação efusiva diante do inevitável, embebida numa negação patológica da realidade. E, num planeta que se afoga na sempre crescente emergência das alterações climáticas, o cartoon também me representa, e aos jovens.

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Meme casa a arder (autoria de K.C. Green)

Aquele meme do cão numa casa a arder. Deixo uma referência visual, para quem ainda não se tenha cruzado com a imagem. Reclinado numa cadeira, com uma chávena pousada na mesa ao lado. Sorrindo. “Está tudo bem”, afirma, rodeado de chamas e fumo, na casa que arde em seu redor.

Um cartoon que personifica a resignação efusiva diante do inevitável, embebida numa negação patológica da realidade. E, num planeta que se afoga na sempre crescente emergência das alterações climáticas, o cartoon também me representa, e aos jovens que, sensibilizados para a luta climática, sentem a pequenez da sua acção no grande plano das mudanças necessárias.

Com o acumular de evidência científica que aponta para a actividade humana como causa da elevação da temperatura média global, indissociável de fenómenos climáticos como secas, dilúvios e proliferação de incêndios, esta é uma temática em que o negacionismo é uma posição difícil de manter. Mais comum é a aquiescência sob a forma de inacção. Olhos fechados, mãos sobre os ouvidos, trauteando o Jardim da Celeste, a maior parte de nós lida com a ameaça das alterações climáticas recorrendo a uma estratégia que usamos para tantos outros problemas sociais - se está longe e não o vemos, não existe; se não existe, não temos sobre nós a responsabilidade de tomar medidas para auxiliar a sua resolução.

Esta postura é possível porque o problema está, de facto, longe. Ainda que alguns efeitos sejam globais, as consequências mais pesadas das alterações climáticas estão a ser sentidas pelos países mais pobres, coincidentemente (ou não) os menos poluidores. Estes fenómenos repercutem-se inevitavelmente através de um aumento do fosso económico e social que já contamina a sustentabilidade humana.

Portanto, a casa arde e o fumo sufoca. O instinto grita que corramos aos baldes de água que ainda poderiam constituir esperança; mas o jogo político barra-nos o caminho e força-nos à consternada aceitação de que a esperança está fora de alcance.

Deixem-me exemplificar: COP26, a 26.ª “Conferência das Partes” da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas. Vinte e seis conferências depois, com a notória ausência dos presidentes da China (o maior emissor de gases com efeito de estufa do mundo), da Rússia e do Brasil (onde a desflorestação constitui uma ameaça ambiental e social cada vez mais proeminente), o próprio presidente da Conferência, Alok Sharma, declarou ter-se alcançado um “pacto imperfeito mas possível”.

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O texto final da conferência sofreu uma alteração de última hora, imposta pela Índia e pela China - a declaração que o recurso ao carvão como fonte energética “vai ser eliminado progressivamente” (phase out) foi alterada para “diminuído” (phase down). Este foi um culminar do cepticismo com que muitos olhavam para a capacidade de gerar verdadeiros compromissos neste tipo de encontros políticos.

E mais: caricatamente, cinco dias depois do fecho da conferência, o governo de Joe Biden, que afirmara que os EUA iriam “liderar pelo exemplo” na luta climática, realizou um leilão para a exploração de petróleo no Golfo do México.

Perante este teatro político de conferências e encontros, retórica e compromissos a meio gás, engole-nos um sentimento de impotência. As manifestações e sensibilização, e a nossa acção individual, parecem-nos de repente como se arremessássemos seixos para tentar derrubar uma montanha.

A luta climática - uma batalha não pela sobrevivência da nossa espécie, pois as elites vingariam, mas sim pela sustentabilidade social humana - exige uma alteração de paradigmas ideológicos e económicos que é tudo menos trivial. Trata-se de um problema holístico, global, cuja solução encontrará barreiras no nosso conhecimento científico, desenvolvimento tecnológico e, acima de tudo, na aceitação social da mudança. Esta complexidade pede medidas que fogem à nossa dimensão individual e recaem sobre os ombros dos líderes e decisores políticos. E, contudo, continuamos a ver a emergência climática a ser tratada como uma pastilha presa na sola dos seus sapatos. Incomoda, sim, mas não é urgente abordá-la.

O que fazer? Na casa que arde com falsos compromissos e crescentes consequências, invade-nos um desencantado cepticismo de que ainda podemos evitar o dilúvio de efeitos das alterações climáticas. Suspiramos, reclinamo-nos sobre a nossa cadeira e tentamos convencer-nos de que “está tudo bem”. Juventude desiludida, descrente, cansada.

Sinto-me muitas vezes como o meme do cão numa casa a arder. Mas deixem-me terminar com um apelo - a razão pela qual continuamos a erguer-nos e a fazer barulho pelas causas em que acreditamos. Podemos não conseguir travar o comboio que se desloca confiantemente na direcção de um precipício, mas cabe-nos fazer o que podemos para reduzir a sua velocidade.

Todos possuímos uma pequena esfera social onde as nossas palavras e acções podem ser partilhadas, e amplificadas. Todos temos informação à distância de um clique. Num sistema democrático, possuímos o poder do voto, exigindo melhores decisores políticos cujos valores reflictam os nossos. E todos temos também o poder de votar com a carteira, influenciando as dinâmicas de oferta e procura e empurrando os mercados a montante.

Se não lutamos pela resolução dos problemas que identificamos no mundo, somos coniventes com essa realidade. Admitir a pequenez da nossa influência não nos despe da responsabilidade de continuar a agir pelas causas que nos tocam. Queremos melhores líderes, e que nossa voz ecoe nas salas das conferências onde, a portas fechadas, se discute o nosso futuro. Na casa que arde, ergamo-nos: “não está tudo bem”.

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