Uma Educação para os amigos?

Porque faltam professores? Por todo um conjunto de políticas desastrosas ao longo de, pelo menos, 15 anos na área da gestão dos recursos humanos na Educação.

Sucedem-se notícias que nos informam sobre o que se sabia há muitos anos estar para acontecer. Situações previsíveis, sobre as quais foram feitos avisos, descartados como alarmistas ou ditados por interesses “corporativos” por gente com responsabilidades executivas que agora disfarça, finge que nada teve a ver com os assuntos e ainda tem a falta de decoro de aparecer em painéis de debate sobre as soluções para os problemas que criaram.

Porque faltam professores? Por todo um conjunto de políticas desastrosas ao longo de, pelo menos, 15 anos na área da gestão dos recursos humanos na Educação. Porque se precarizou e proletarizou a docência em nome de uma “eficácia financeira” que, no essencial, acabou com prejuízo directo dos alunos e não dos “interesses dos professores”. Foi este o resultado da vitória dos preconceitos sobre uma adequada análise do que estava em causa.

A OCDE vem afirmar que a “Escola a Tempo Inteiro” foi uma política que em nada ajudou os alunos nas aprendizagens, limitando-se a ser uma estratégia de suporte assistencial para que os adultos possam deixar as crianças em segurança algures, enquanto vão trabalhar em horários completamente desregulados? Mas não se anteviu isso logo no início, quando era mais do que perceptível que a política em causa tinha tudo em vista menos a Educação ou qualquer vantagem para os alunos? Que sentido existia em criticar o excesso de tempo de escola para os alunos e depois aumentá-lo? Criticar a fragmentação curricular e depois criar novas disciplinas? Em 2007 ou 2008 isso era claro, mas só em 2021 vem a conclusão com a chancela da OCDE a admiti-lo, quando os responsáveis já estão longe e, se inquiridos a esse respeito, declararão que a culpa não foi das suas ideias mas do modo como foram implementadas no terreno.

Do mesmo modo, daqui por uma década, teremos estudos que demonstrarão que boa parte das medidas colocadas em prática nos últimos anos em termos de organização e “flexibilização” curricular, de transformação das “aprendizagens essenciais” em programas disciplinares, de redefinição das prioridades na formação contínua dos professores, de permanente revisão das metodologias de avaliação dos alunos ou mesmo de planos de “recuperação das aprendizagens”, mais não foram do que pretextos para o desenvolvimento de uma agenda de “engenharia do sucesso” e para a mistificação da opinião pública quanto a uma alegada “Educação para o século XXI”.

Em reunião recente com os responsáveis pelos Centros de Formação Contínua foram apresentadas prioridades que correspondem ao afunilamento das opções tidas como prioritárias (logo, passíveis de financiamento), a um empobrecimento claro da componente mais académica dessas opções no sentido de as restringir às promovidas por uma clique restrita de apoiantes dos governantes da área. Ler que é necessário ter formação para ensinar de acordo com as “aprendizagens essenciais” é o equivalente a dizer a engenheiros informáticos que precisam de formação para a identificação dos componentes fundamentais de um computador; já quanto à capacitação digital dos docentes, havendo coisas boas a funcionar, o que se constata é que em muitos casos ou a formação é de qualidade baixa ou nem sequer existe. Porque se nem há professores de T.I.C. suficientes nas escolas, como haverá formadores na área do digital para todos os professores das restantes disciplinas?

Para além disso, temos a centralidade da formação num projecto cuja aplicação prática contraria de forma evidente o documento que se diz ser o principal referencial para a avaliação dos alunos (o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória). Quando se defende uma avaliação humanista, integral, diferenciada e holística dos alunos como indivíduos no seu todo, como se pode forçar uma avaliação por rubricas e sub-rubricas, com escalas quantitativas e qualitativas, desdobradas em múltiplos níveis e desempenho, com alongadas sínteses descritivas para cada um desses níveis? Afirma-se que é para enriquecer o feedback dado a alunos e famílias acerca do desempenho escolar daqueles, mas a sua tradução prática é um retrocesso para metodologias de há três décadas quando se tornou obsessão a produção de grelhas para tudo registar e “monitorizar”, de forma a controlar mais o trabalho dos professores do que o dos alunos.

Quanto ao currículo, em nome de uma modernidade que transpira bafio, desvalorizaram-se áreas consideradas “tradicionais”, em especial no campo das Humanidades, para se integrarem “inovações” que se limitam a traduzir gostos pessoais de uma tertúlia de amigos que se entrincheirou no Ministério da Educação. A Filosofia quase desapareceu do currículo, mas temos direito a “filosofias” variadas, colhidas aqui e ali, que se afirma terem dados “bons resultados”, sem que se perceba exactamente onde e quais. Apenas que já conseguiram espaço e contratos em mercados municipais da Educação (quase sempre de um mesmo partido). A História passou a ser ensinada na lógica do “essencial” com dois ou três tópicos que passam a Antiguidade Clássica por alto em voo rápido, mas sobram “estórias” para contar em “projectos” que transformam partes significativas do património comum da Humanidade em apresentações digitais de detalhes anedóticos.

Pretende-se que a população acredite nas conquistas da Ciência, mas nas escolas não existem condições para qualquer ensino experimental de qualidade; claro que depois, em visitas inspectivas, se classificam como insuficientes práticas impossíveis de desenvolver com as condições existentes. Declara-se que se entrou na era da Escola Digital, mas no quotidiano escolar, tirando umas salas “do futuro”, em escolas seleccionadas com base na confiança pessoal de governantes e director@s, muito promovidas na comunicação social, os professores continuam a trabalhar com equipamentos mais do que ultrapassados ou da gama mais baixa possível (como os que chegaram tarde e a más horas durante a pandemia), com a curiosidade dos computadores fornecidos aos docentes terem o mesmo tipo de filtragem de conteúdo do que os facultados aos alunos, impedindo que, por exemplo, se possa assistir a uma sessão em streaming no Youtube.

Este é o balanço do trabalho da equipa que governou a Educação nos últimos seis anos e tudo é mau? Não, é o balanço de 15 anos em que – fora este ou aquele epifenómeno dos tempos da troika – o sentido da acção política tem sido no mesmo sentido: o do erosão dos padrões de rigor em nome da “inclusão” mistificadora; de empobrecimento das aprendizagens, como resultado do corte em conteúdos e tempo para os leccionar, em nome de “inovações” onde se pode aprender empreendedorismo ou a andar de bicicleta, quando as ditas chegarem; de multiplicação de exigências burocráticas em torno da avaliação e da promoção de projectos que só retiram tempo aos docentes para trabalharem com os seus alunos em boas condições; de manutenção de um modelo de gestão escolar em que a autonomia significa subserviência à hierarquia É tudo mau? Não, porque há ainda quem consiga desligar de um sistema criado e mantido para alimentar clientelas que detectam “problemas” ou “insuficiências” na formação dos professores para que possam apresentar as suas “soluções”, monopolizando a formação contínua com financiamento garantido.

Os alunos ganham alguma coisa com tudo isto? Talvez um “sucesso” construído em bases muito frágeis que não resiste à realidade exterior aos portões das escolas.

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