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Bullying: Susan retrata a dor no olhar das vítimas (e dos agressores)

São quase 200 os retratos de vítimas de bullying e de bullies que a fotógrafa holandesa Susan Leurs reúne, desde 2016, para o projecto Pesten. “Também fui vítima de bullying durante a minha juventude e achei que era altura de fazer alguma coisa”, contou ao P3, em entrevista.

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“Tharukshan S. tinha muitos amigos na escola primária e era extremamente próximo deles”, explica a sua irmã Saranya, numa mensagem que partilhou publicamente no Facebook, a 11 de Janeiro de 2017. “Foi quando ele ingressou na nova escola preparatória [em Heerlen, nos Países Baixos,] que os problemas começaram.” Extorsão, insultos, agressões físicas, humilhações passaram a fazer parte da rotina. “Os colegas criaram várias contas de Instagram falsas onde publicavam fotografias dele sem a sua permissão, com o objectivo de o magoar. Enviavam-lhe mensagens anónimas nas redes sociais que diziam, por exemplo, ‘Tharukshan, morre, não tens o que é preciso para viver. Não te queremos. Salta para a frente de um comboio e mata-te’.” A 8 de Janeiro de 2017, Tharukshan S., com apenas 15 anos, não resistiu à pressão e colocou termo à própria vida.

Foi com grande choque que a holandesa Susan Leurs, fotógrafa e professora, acompanhou a notícia da morte de Tharukshan S.. “Eu vivia a 25 quilómetros daquela escola”, recorda, em entrevista ao P3, a partir de Stein, na província holandesa de Limburgo. “Também fui vítima de bullying durante a minha juventude e achei que era altura de fazer alguma coisa sobre o tema.” E assim nasceu o projecto Pesten, uma série de retratos fotográficos de vítimas de bullying e de bullies de várias partes do mundo que, até hoje, conta com quase 200 participantes – entre os quais um português.

Nem todas as histórias de bullying têm um desfecho tão dramático como a de Tharukshan – embora existam inúmeros casos semelhantes em todo o mundo –, mas todas têm consequências nefandas e duradouras para as vítimas, sobretudo ao nível da autoconfiança e auto-estima. “Uma das minhas amigas mais próximas foi vítima de bullying durante toda a infância e juventude”, partilha Susan. “Tinha 1,96 metros de altura, usava uns óculos enormes, e nunca falou sobre isso para não magoar ninguém. Vivia como se usasse constantemente uma máscara.” Susan conheceu-a aos 22 anos e ela era “muito simpática”. “Mas eu tinha a impressão que não a via realmente”, explicou. “Uma vez fomos de férias e ela estava extremamente infeliz. Fotografei-a e acho que consegui capturar essa emoção. Disse-lhe que queria que ela olhasse para a foto e foi nessa altura, confrontada com a imagem, que, em lágrimas, me contou sobre o bullying de que foi vítima. Disse-me que só então começava a conhecer-se melhor, que passou toda a vida a tentar ser diferente por achar que não era suficientemente boa.”

Não existe um traço comum entre quem sofre as agressões, refere Susan, com base nas muitas dezenas de testemunhos que recolheu. Qualquer pessoa pode tornar-se num potencial alvo, independentemente das características físicas ou intelectuais, da idade, do contexto sociocultural. “A vítima mais jovem que fotografei tinha três anos”, sublinha. “Muito inteligente, com um vocabulário muito desenvolvido para a idade. E tudo começou com pequenos comentários por parte dos colegas de infantário. Foi muito surpreendente para mim perceber que pode começar tão cedo.”

Todas as histórias que ouviu “são diferentes” e todas são relevantes. Recorda uma, em particular, sobre uma menina, Amy, que começou a ser vítima de bullying aos seis anos. A agressora tinha a mesma idade e era filha de um homem que sofria de stress pós-traumático. “Durante seis anos, Amy recebeu ameaças de morte por parte dessa criança. Sofreu muito e continua a não estar bem passados estes anos. Desenvolveu problemas psiquiátricos.” Susan pretende fotografá-la novamente, uma vez que já passaram cinco anos desde o primeiro retrato.

Janneke foi apelidada pelos colegas, durante anos, de “peso pesado”. “Os dias de escola eram como um furacão”, contou a mulher de 30 anos à fotógrafa holandesa. “Encontrei conforto na comida e o meu peso aumentou. As dietas não funcionavam. Tinha dores de estômago de tomar laxantes e dores de fazer tanto exercício. E quando não comia, desmaiava no ginásio. Tinha 14 anos quando provoquei o vómito pela primeira vez.” A bulimia é um fantasma adormecido que a acompanha até hoje.

O português Miguel Martins, um dos retratados do projecto Pesten, partilhou o seu testemunho com a fotógrafa e com o portal de notícias Dezanove, dedicado à temática LGBT. “Na aldeia de Penafiel onde cresci há 30 anos, sempre me senti diferente”, escreveu. “Enquanto os meus amigos rapazes gostavam de brincar com carros ou soldadinhos em miniatura, eu preferia brincar com bonecas.” Entre os seis e os 18 anos, “um grupo de rapazes” atormentou Miguel. “Lembro-me perfeitamente de me sentir sozinho, isolado e humilhado diariamente. Lembro-me de me sentir impotente e fraco. Apesar disso, nunca contei a ninguém o que estava a acontecer.” “Falar sobre o bullying do qual eu era vítima exigiria que eu desvendasse aquilo que eu acreditava ser o meu ‘defeito’”, refere, aludindo à sua orientação sexual. “A simples ideia de dar a conhecer esse meu ‘defeito’ a um adulto era pior do que o próprio bullying.” Passados muitos anos, Miguel continua a lidar com as marcas psicológicas dos abusos que sofreu, que afectam, ainda hoje, a sua auto-estima e autoconfiança. “Posso dizer com sinceridade que perdoei todos os meus agressores. Porém, jamais esquecerei o que eles me fizeram passar.”

Mas e os agressores? Terão conseguido esquecer as agressões? Compreenderão que o foram? Mart, de 53 anos, foi bully “sem se aperceber”, contou à fotógrafa. “Nós fazíamos bullying a um rapaz, o Geert. Não brincávamos com ele, deixávamo-lo de fora. Atormentávamo-lo, chamávamos-lhe nomes. Eu só me juntei ao grupo: já toda a gente o fazia. E eu não tinha consciência de que isso não era aceitável.” Geert era “mais gordinho”, descreve Mart. Usava roupas que todos consideravam estranhas. “Tinha muitas estátuas de gnomos no quintal de casa e o pai dele também tinha um aspecto diferente, parecia um gnomo. Achávamos tudo aquilo uma loucura e fazíamos troça disso.” Quando houve uma reunião de antigos colegas de escola, Geert não quis estar presente e Mart apercebeu-se do que tinha feito. “Percebi que tinha muitas memórias boas dos meus dias de escola e que deveriam ser muito diferentes das de Geert. Tanto que ele não nos queria rever. Fiquei chocado e isso fez-me pensar muito. Teria estragado a vida de alguém? (...) Não sei o motivo pelo qual o fiz, apenas participei.”

Ser bully e ser vítima de bullying nem sempre são coisas distantes. “Um bully, por vezes, apenas quer sobreviver, socialmente; direccionando atenção negativa sobre outra pessoa impede que essa recaia sobre si. Por vezes, os bullies foram também vítimas de bullying.” Para Susan, é tão importante humanizar vítimas e agressores. “Somos todos humanos.” Preocupa Susan Leurs o facto de muito mais mulheres do que homens se sentirem à vontade para partilhar histórias de fragilidade – as mulheres formam a maioria do grupo de retratados. Acredita, porém, que é necessário, cada vez mais, falar-se sobre bullying, adoptar estratégias no sentido da sua contenção e prevenção. “Desenvolvo o projecto Pesten com o intuito de gerar discussão. Quero certificar-me que as pessoas conseguem ver e perceber o que andam fazer umas às outras.”

Sterre
Sterre ©Susan Leurs
Leo
Leo ©Susan Leurs
Amy
Amy ©Susan Leurs
Ashton
Ashton ©Susan Leurs
Marco
Marco ©Susan Leurs
Nora
Nora ©Susan Leurs
©Susan Leurs
Gody
Gody ©Susan Leurs
Miguel
Miguel ©Susan Leurs
Lianne
Lianne ©Susan Leurs
Michel
Michel ©Susan Leurs
Mandy
Mandy ©Susan Leurs
Monique
Monique ©Susan Leurs
Mart
Mart ©Susan Leurs
©Susan Leurs
Silvia
Silvia ©Susan Leurs
©Susan Leurs
Jan
Jan ©Susan Leurs
Eric
Eric ©Susan Leurs