Perder o chão com os pés bem enterrados na areia

Foi nessa tarde também que me tornei uma pessoa de fé; vi o nosso rapaz moribundo e assisti ao milagre de o ter de volta, e recuperei uma felicidade por estrear, passei a acreditar que há coisas que nos transcendem e em que devemos confiar porque não temos alternativa.

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Eu e a minha mulher ficámos sem chão naquela tarde, e tínhamos os pés bem enterrados na areia da praia. O nadador-salvador a reanimar o nosso rapaz, a fazer-lhe respiração boca-a-boca, e nós impotentes, sem podermos fazer nada, com dezenas de pessoas semidespidas e descalças à nossa volta, num grande círculo humano de inquietação.

A minha memória dessa tarde é confusa. Sei que me saltavam lágrimas dos olhos sem que as controlasse, e que agarrava os ombros da minha mulher, que gemia ou chorava, não sei dizer. Nunca falámos desse episódio das nossas vidas porque ela diz que lhe dá dores no ventre e que volta a ver tudo escuro. A certa altura, o nosso rapaz começou a bolsar um líquido esverdeado, convulsionando o tronco, e o nadador-salvador gritou: “Afastem-se. Deixem o miúdo respirar”, cumprindo assim a sua função de salvador, e para nós, pais da criança, de milagreiro.

Foi nessa tarde também que me tornei uma pessoa de fé; vi o nosso rapaz moribundo e assisti ao milagre de o ter de volta, e recuperei uma felicidade por estrear, passei a acreditar que há coisas que nos transcendem e em que devemos confiar porque não temos alternativa. Neste caso, o destino foi benevolente e a natureza não me levou o rapaz. Todavia, a minha patroazinha sofreu o fenómeno contrário: desde essa tarde que tudo lhe mete medo e, mesmo agora que o nosso filho cresceu e vive no estrangeiro, não passa um dia sem que tema pela saúde dele, saturando-o com mensagens e telefonemas diários, mais em busca da sua paz interior do que do estado em que se encontra o rapaz.

Percebi nesse dia que os filhos não nos pertencem e, por isso, o importante é que, longe ou perto, estejam bem. Eduquei-o dando-lhe a liberdade que pretendia, muitas vezes indo ao contrário da vontade da mãe, que simplesmente o queria aprisionar em casa, impedindo-o dos perigos, verdade seja dita, mas também de viver. Tenho o maior orgulho naquele homem que, por acaso, é meu filho – eu que nada fiz, que me limitei a cumprir a minha natureza de procriador e que o eduquei o melhor que pude, com bons princípios, para que fosse uma pessoa do bem. Só queria que fosse uma boa pessoa em adulto, que fosse um homem bom. E assim está a ser, o meu filho é deputado no Parlamento Europeu. E toda a gente sabe que os políticos, à semelhança dos padres na vida civil, são os eleitos na prática do bem.

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