Quisera eu dar-vos gelados de violeta, mas murcharam todos

Gosto mais das pessoas dos livros do que das pessoas do mundo. Embora as pessoas dos livros também sejam pessoas do mundo, alguém as colocou por cá pelo uso da cabeça e das mãos, e agora já não podem ir-se embora.

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Candy Zimmerman/Unsplash

Nunca comi gelado de violeta, mas descobri num livro de contos a história de uma mulher que se deliciava na praia com a dita guloseima exótica. Enquanto vigiava o filho a brincar à beira-mar, a mulher ia refrescando a língua e a boca e parecia realmente satisfeita com aquele momento da sua vida.

Gosto mais das pessoas dos livros do que das pessoas do mundo. Embora as pessoas dos livros também sejam pessoas do mundo, alguém as colocou por cá pelo uso da cabeça e das mãos, e agora já não podem ir-se embora. As pessoas dos livros duram apenas alguns momentos e nunca morrem; talvez seja por isso que gosto tanto delas. A diferença é que vivem como que escondidas num apartamento, neste caso num livro, e só se mostram a quem lhes vai bater à porta.

Imaginei como seria o sabor das flores aveludadas e lilases. Às vezes, as comidas e os lugares também parecem melhores nos livros; tudo é embelezado ou deformado por causa da arte. Quando os livros têm arte, claro, porque há muitos que são só “papéis pintados com tinta”, como dizia o poeta. E a vida já se sabe que não tem arte nenhuma. Assim me pareceu este gelado do livro: algo mais do que aquilo que é. Imagino-o roxo e perfumado, uma bola perfeita equilibrada sobre um cone de palhinha clara e crocante.

Um gelado pode ser perfeito nas páginas de um livro, só derrete e só se esgota quando o autor quiser. E eu nem gosto particularmente de gelados nem de violetas, mas a mistura dos dois parece-me digna de uma pintura. Um objecto cuja beleza efémera se derrete e escorre perenemente pelas mãos até aos cotovelos dos braços nus. Ao alcance de quem lê ou observa; não é para comer com os lábios, a língua e os dentes, mas com os outros sentidos.

Imagino Ofélia, a de Shakespeare, a lamentar não conseguir ofertar gelados de violeta, mesmo antes de enlouquecer devido ao assassinato do pai e ao desamor de Hamlet, mesmo antes de se atirar ao rio. Como seria idêntico se Ofélia, em vez de ramos de violetas, mencionasse gelados das ditas flores — se nessa altura esse hábito houvesse — como seria igualmente fugaz esse sinal do início do ensandecer e da aproximação da morte, podia ter sido dado através do tempo que leva um gelado a derreter, em vez do murchar das violetas.

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