As minhas memórias são os videoclipes nunca editados de centenas de canções

Lembro-me de um início de paixão num sofá castanho depois de um concerto dos Placebo no Coliseu, ainda embrenhado nos acordes e vocalizações de Without You I’m Nothing e Black Market Music. Toda a história fazia sentido naquele ambiente, naquela penumbra misteriosa e romântica.

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Ao escrever isto no Dia Internacional da Música, que se assinala a 1 de Outubro, reparo que há quem consiga descrever cronologicamente as etapas da sua vida por anos ou épocas. Eu, contrariamente, apenas consigo organizá-la por bandas sonoras, canções ou discos, que ouvi em determinada altura, quase como se tivesse musicado um passado ou tivesse feito parte de um filme. Sou fraco de números e datas e, por isso, rebusco na minha mente acções ou momentos do passado por música, quase como uma pequena fonoteca. Aos sons associo a temperatura e outras sensações.

Não sei o ano, mas lembro-me de ouvir num walkman vermelho, recebido como presente de Natal uma cassete BASF cinzenta. Tinha um catálogo de artistas que ia de Bon Jovi e Guns’n’Roses a Onda Choc. Foi gravada e oferecida pela mãe de um amigo. Viajo de imediato para o parapeito da janela da primeira casa dos meus pais, sentado da parte de dentro, e lembro-me de praticamente tudo o que pensava enquanto observava a chuva lá fora. Vestia por casa um fato de treino de malha verde. Cheirava a lenha que estava no cesto encostado ao canto da sala.

Não consigo precisar a data em que os meus pais me ofereceram o meu primeiro hi-fi, mas lembro-me perfeitamente dos meus problemas e anseios da altura colados ao som do disco que reunia as Love Songs de Elton John com o qual o equipamento foi estreado. Nem o ano em que me fingia um adulto deprimido pela vida rotineira quando, nos fins de tarde de Inverno melancólicos do Minho, se ouvia No Need to Argue dos Cranberries que ainda adivinhavam mais chuva – palavras da minha mãe.

Não me recordo bem do ano, mas era imperativo para mim aprender a tocar guitarra como o Noel Gallagher e começar a cantar como o irmão Liam. Eram as minhas palavras cantadas por eles e eu a querer ser rebelde e independente com as suas músicas perante os meus pares. O penteado também procurava assemelhar-se no tom. Ainda hoje lhe invejo as parkas que sempre quis replicar.

Lembro-me de um início de paixão num sofá castanho depois de um concerto dos Placebo no Coliseu, ainda embrenhado nos acordes e vocalizações de Without You I’m Nothing e Black Market Music. Toda a história fazia sentido naquele ambiente, naquela penumbra misteriosa e romântica. Tudo ganhava mais valor e emoção. Aqui recordo-me das canções e do ano. Confundia vida real e cinema. Não sei o ano em concreto, mas lembro-me de estimular a mente adulta enquanto tocava com o meu amigo Jorge Moura o disco Hail to the Thief dos Radiohead na íntegra a duas guitarras, ao mesmo tempo que as aulas de Direito se tornavam cada vez mais secundárias. Ainda hoje tocamos juntos e a música foi sempre um laço.

A música foi-me ensinando. Fez-me abrir a mente, a alma e mudar. Fez-me querer ser diferente e saber aceitar. Fez-me olhar para tudo com outros olhos, gerar interrogações e abrir interpretações. E então mudei. Quis viver nela em todos os aspectos. Exteriorizei o que trazia dentro e fiz bandas sonoras para o passado dos outros ao som do “Inverno” ou do “Mediterrâneo”. Procurei levar concertos à minha terra natal para que outros pudessem ouvir, contactar com mais música e ser por ela inspirados ao mesmo tempo que ajudo quem a faz por missão. No Direito, exactamente a mesma coisa.

Considero-a tão importante quanto o ar que respiramos, no qual se confunde. Representa a afirmação de várias civilizações, suas culturas e ideias, de movimentos políticos e artísticos, o anúncio das coisas boas e o confirmar de tragédias. É o imaterial a passear pelo tempo e a tocar os homens do futuro. Representa a injecção de sensibilidade que fará melhores os homens, que dá tom às suas estéticas e voz para que se construa um melhor lugar. É a viagem e o regresso.

No dia de hoje tenho o privilégio de trabalhar num projecto (M.Ou.Co.) que tem essa preocupação central: dar música a quem o visita, a quem se cruza nas suas actividades, sempre com o objectivo de inspirar e marcar a cada momento, a cada nota, a cada canção. Será que se um dia nos esquecermos de todas as músicas se vão apagar todas as nossas memórias?

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