Nascer e morrer em Kandahar

No Sul do Afeganistão, quase todas as mulheres têm os filhos em casa. A maioria nunca viu um médico. Muitas morrem antes de serem vistas por um homem. Cada mãe perde em média dois filhos. Em 2008, Alexandra Lucas Coelho deixou aos leitores do PÚBLICO um retrato dessa realidade em Kandahar.

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Sari vem da Europa e isto é Kandahar. “Aqui vejo coisas que só conhecia dos livros.” Mães que andaram anos com o útero de fora. Todas as semanas bebés com espinha bífida. Todos os dias bebés que já morreram. “A maior parte das mulheres tem os filhos em casa e vem ter connosco muito tarde, com os filhos mortos.” Coisas que atiram o Afeganistão para o fim do mundo. Mortalidade materna? Pior só na Serra Leoa.

Em Kandahar estão uns 40 graus à sombra. A finlandesa Sari puxa o lenço do pescoço e cobre o cabelo porque chegou a hora de voltar ao hospital. Continua a parecer uma nórdica demasiado loura e robusta para parecer afegã. Mas, escada acima, escada abaixo, e sem ar condicionado, não deixará descair o lenço até ao fim do dia.

E o mesmo faz a outra nórdica das redondezas, Turid, uma norueguesa miúda, ruiva e sardenta.

Sari Silventoinen é médica obstetra, Turid Andreassen é enfermeira pediátrica e ambas integram a equipa do Comité Internacional da Cruz Vermelha em Kandahar. Vieram, como todos os dias, almoçar à delegação e agora vão regressar ao hospital que, além de servir a cidade, serve todo o Sul, três milhões de pessoas.

O Hospital de Mirwaiz é o eixo da vida e morte nesta parte do Afeganistão disputada ao governo e aliados estrangeiros em combates reacesos no começo do Verão.

Primeiro os taliban tomaram de assalto a prisão de Kandahar, libertando centenas de militantes e prisioneiros. Depois ocuparam aldeias no vale fértil de Arghandab, um pouco a norte. As tropas afegãs e canadianas foram reforçadas.

Agora o ar está tenso como um balão.

Até na Cruz Vermelha, onde 15 internacionais vivem e trabalham, entre 130 afegãos. Há pequenos jardins floridos, livros, piscina e barbecue, mas também há barricadas de sacos de areia, rede anti-granadas e bunker subterrâneo.

Dois anos depois do derrube dos taliban, um dos sinais de que tudo podia rebentar no Afeganistão foi o assassinato deliberado de um membro da Cruz Vermelha, o engenheiro suíço-salvadorenho Ricardo Munguia, em 2003, pelos taliban.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha não é a ONU. Não representa partes, não envia tropas. Tem um mandato de neutralidade perante todos num conflito. E o Afeganistão representa uma das suas maiores operações humanitárias.

A morte de Ricardo foi assim alarmante. Se a Cruz Vermelha estava a ser atacada, toda a gente podia ser atacada. Os Médicos sem Fronteiras, com décadas de trabalho local, abandonaram o Afeganistão depois de membros seus serem mortos. Outras organizações concentraram pessoal internacional em Cabul.

A Cruz Vermelha manteve as delegações, incluindo projectos de longo prazo como o apoio ao Hospital de Mirwaiz, e até reforçou a equipa de internacionais. Mas, à semelhança de todas as organizações no Afeganistão, estabeleceu regras de movimento.

Em Kandahar, a cidade onde Ricardo foi morto, os membros internacionais têm recolher obrigatório às seis da tarde, andam sempre com walkie-talkies, nunca vão a pé na rua e mesmo que só tenha de sair uma pessoa saem pelo menos duas carrinhas com bandeira, rádio e intérpretes, além dos condutores.

É por isso que Sari e Turid agora sobem para a carrinha da frente, acompanhadas por um fantasma azul. É a tradutora-parteira Shaqiba, que acaba de cobrir a risonha cara de lua-cheia com a burqa que todas as médicas, enfermeiras e parteiras afegãs usam, até em zonas do hospital.

Mirwaiz fica a 50 metros, “não, 87!”, corrige Turid, mas sempre que alguém lá vai é esta operação rodoviária. Na carrinha de trás segue Arthur Aseka, o queniano especialista em gestão hospitalar que a Cruz Vermelha contratou para este projecto. Quando um grupo misto tem que ser transportado, as mulheres vão num carro e os homens noutro.

O Afeganistão é um país altamente protocolar. Há todo um código com consequências diplomáticas. A separação de homens e mulheres representa um sinal de não-afronta a esse código.

Para além disso, permite às afegãs que trabalham com a Cruz Vermelha não serem acusadas de se misturarem com homens. Torna-se socialmente mais aceitável para as famílias deixá-las trabalhar.

Ver a reportagem na íntegra aqui

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