Neoparolo rococó

A nós, portugueses, são quase 900 os anos que nos castigam os ossos e nos enfermam as articulações, e há que agarrar a modernidade como náufrago que deita mão ao destroço. Portanto, let’s get this show on the road, e saibamos by heart a origin story de cada herói, vilão, sidekick e ajudante de sidekick da Marvel e da DC, e abandonemos o velho no deserto.

Em primeira visita à Barragem do Alqueva, não pude deixar de sorrir perante a descomunal etiqueta que os demiurgos lusitanos penduraram sobre o magnífico Guadiana para legendar a paisagem desta forma: “On a clear day you can see forever”. Abstenho-me de traduzir esta passagem sálmica porque se os demiurgos não viram essa necessidade é porque ela não existe.<_o3a_p>

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Brilhante ideia esta de permitir aos estrangeiros visitarem-nos sem que lhes pese demasiado a noção de que estão longe, num outro país, que é diferente, antigo, que tem língua própria, idiossincrática, e uma cultura diversa e curtida pelos anos. Essa ambiciosa experiência de diáfana familiaridade, sugerindo um estado de espírito não como quem está num outro país mas sim como quem experimenta uma pastelaria fora de mão, ficaria completa e sublime se se decretasse a abertura de um MacDonalds no miradouro, e confio que a colmatação dessa falta já conste nos programas autárquicos.<_o3a_p>

Claro que há uma interpretação alternativa para aquelas letrinhas alienígenas e colossais ao ponto de serem visíveis do espaço, que é a de que se quis provar que é possível fazer poesia pronto-a-vestir em qualquer língua, inclusive na que é entendida como universal. Se foi esse o caso, também nisso os nossos delfins foram coroados de êxito e não merecem menos do que receber comendas pela mão do Comendador Berardo, o homem das artes himself.<_o3a_p>

Não tem cabimento, pelo contrário, a teoria de que quiseram com aquela bela obra fazer apenas gala dos seus conhecimentos da Língua Inglesa, pois é óbvio que o desafio está precisamente no oposto, o de ser totalmente alheio a essa língua depois de ela nos ter invadido o cinema, a música, a televisão, o comércio, a publicidade, os supermercados, etc. Até nos frescos das paredes dos WC públicos se adoptou há muito os falares de Shakespeare.<_o3a_p>

Aliás, é de tal ordem essa invasão de veludo que há hordas de portugueses que, na rua, nas empresas ou no recato mediático, brindam quem não foge a tempo com um discurso sarapintado de inglesismos, espetados à sovela aqui – ali - e acolá, e fazem-no obviamente não por pretensiosismo, não por parolice tout court, mas por pungente falta de fluência na Língua Portuguesa.<_o3a_p>

A nós, portugueses, são quase 900 os anos que nos castigam os ossos e nos enfermam as articulações, e há que agarrar a modernidade como náufrago que deita mão ao destroço. Portanto, let’s get this show on the road, e saibamos by heart a origin story de cada herói, vilão, sidekick e ajudante de sidekick da Marvel e da DC, e abandonemos o velho no deserto.<_o3a_p>

Saúdo os demiurgos que penduraram aquela frase no céu, tão inspirada e de tal alcance poético que poderia perfeitamente figurar nas caricas da Budweiser, e a cravaram bem nos rins de Portugal para mostrarem ao mundo o pouco amor que temos ao que é nosso e, deus nos livre!, ao que é original.<_o3a_p>

Em boa hora resistiram à tentação de empregar versos de um qualquer poeta local ou nacional, porque quem visita este país não vem pelo que é nosso ou pelo que é característico, mas sim pelo MacDonalds e pela poesia em saquetas.<_o3a_p>

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