Vícios privados, virtudes públicas: a sociedade atual e a Fábula das Abelhas de Mandeville

Convém relembrar que toda a ação contém uma componente ética, pelo que não poderá existir uma sociedade publicamente virtuosa que seja baseada em vícios individuais. Tal situação igualar-se-ia à construção de uma casa sem alicerces.

Ao ler a descrição constante da Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville, onde o autor refere que “Todos os dias se cometiam delitos nessa colmeia e a própria colmeia estava corrompida. Mas nem por isso a colmeia era menos próspera porque os vícios dos particulares contribuíam para a felicidade pública”, visualizei uma sociedade muito semelhante à nossa, que aparenta proporcionar alguma satisfação ao conjunto da população.

Acontece que esta aparência de um bem-estar geral, que se verifica sempre que o poder económico, que conduz à sensação do bem-estar generalizado, se constitui como o centro à volta do qual gravita toda a sociedade, reduzindo o ser humano a um objeto, não passa de uma mera ilusão que, inevitavelmente, conduz à denominada “globalização da indiferença”[1].

De facto, e citando Anselmo Borges[2], quando a economia se move pelo afã de ter mais e mais não há lugar para a dignidade humana pois passa a imperar a cultura do descarte: descartam-se os jovens, porque ainda não podem produzir; descartam-se os defeituosos, porque não conseguem produzir e descartam-se os idosos, porque já não podem produzir.

A este apego ao sucesso, ainda se acrescenta o jogo das aparências – alegadamente todos os políticos, os empresários e as instituições que formam a sociedade promovem e procuram o bem comum! Contudo, esta afirmação, que nunca foi confirmada pelos factos, baseia-se numa premissa altamente duvidosa – a de que todos os membros da sociedade se regem por princípios éticos.

Ora, como constata Anselmo Borges[3], se todos fossem éticos, não seria necessária a política, enquanto organização do poder, pois a política não tem como finalidade tornar os homens bons, pelo contrário, ela existe porque não agimos eticamente e tem como finalidade congregar esforços para que seja alcançado o bem comum. Assim, não há política ética, apenas há homens e mulheres éticos ou não na política.

De facto, uma sociedade não pode prescindir nem de normas jurídicas, nem de princípios éticos, por forma a garantir a defesa do bem comum.

Todas estas considerações nos conduzem à questão inicial - a de saber se a nossa sociedade não estará a aproximar-se, perigosamente, da comunidade de Mandeville, uma vez que tudo tende a girar à volta da economia, do dinheiro e do sucesso, ignorando-se a pessoa humana e os seus valores e direitos.

Neste conceito, parece que basta que uma sociedade seja economicamente viável, para ser considerada uma sociedade “vencedora”, ignorando-se, na maioria das vezes, a vertente humana e ética, que constitui a base para que uma comunidade se possa considerar justa e livre.

Contudo, convém relembrar que toda a ação contém uma componente ética, pelo que não poderá existir uma sociedade publicamente virtuosa que seja baseada em vícios individuais. Tal situação igualar-se-ia à construção de uma casa sem alicerces, poderia ser muito bela e estética mas, mais tarde ou mais cedo, desmoronar-se-ia.

Este desfecho só poderá ser evitado se a vida da polis se basear em dois pilares fundamentais: a dignidade do ser humano e a promoção do bem comum, sendo que tal desiderato nunca poderá ser atingido à margem da ética.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

[1] V. Borges, Anselmo – Francisco: Desafios à Igreja e ao Mundo, p. 108. Gradiva Publicações (2017).

[2] V. Borges, Anselmo – Francisco: Desafios à Igreja e ao Mundo, p. 110. Gradiva Publicações (2017).

[3] V. Borges, Anselmo – Francisco: Desafios à Igreja e ao Mundo, p. 110. Gradiva Publicações (2017).

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