Passo a passo, nunca desistir

Há cerca de 430 milhões de crianças a viver em zonas de guerra. E temos de as ver, temos de nos chocar, temos de querer saber, e temos de perceber qual é o nosso papel enquanto cidadãos do mundo para que a mudança seja uma realidade.

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Reuters/US MARINES

Eu tenho amigos no Afeganistão, eu lutei muito entre as paredes de um hospital e, como tal, sinto-me ligado para sempre a este país que me deixou apaixonado. A subida ao poder dos taliban é uma péssima notícia para o mundo, mas também era absolutamente previsível.

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Eu tenho amigos no Afeganistão, eu lutei muito entre as paredes de um hospital e, como tal, sinto-me ligado para sempre a este país que me deixou apaixonado. A subida ao poder dos taliban é uma péssima notícia para o mundo, mas também era absolutamente previsível.

Então, se era previsível, porquê tanta comoção internacional? Porque há uma mudança de paradigma, e as mudanças agitam-nos as consciências, sejam elas para melhor ou para pior. Desde 1973, aquando da deposição do rei Shah, que o Afeganistão não sabe o que é paz. São praticamente 50 anos de guerra, num país onde a esperança média de vida não anda muito longe disso, porque é um dos mais pobres do mundo. Então porquê a surpresa de todo o mundo agora? Porque estão lá câmaras e pessoas que nos explicam em inglês a catástrofe em andamento.

E porquê esta revolta mundial com o regresso dos taliban ao poder? Essencialmente pela questão das mulheres. E não é motivo mais do que suficiente para a nossa revolta? Claro que é. Mas isto já estava a acontecer no Afeganistão, no território previamente ocupado pelos taliban, que era quase 50% do território (embora em população, muito menos), e também acontece na província do Noroeste do Paquistão, que na minha experiência é bem mais radical do que o Afeganistão que eu conheci, e também temos o tratamento repugnante das mulheres na Arábia Saudita e noutros estados da península Árabe, a quem aliás os extremistas religiosos vão buscar o seu extremismo ideológico, o wahhabismo.

Igualmente chocante é a mutilação genital feminina em quase toda a África do Oeste. Temos também uma série de países em conflitos activos armados que são, cada um, uma catástrofe humanitária com níveis de sofrimento humano iguais ou piores às imagens que vemos do aeroporto de Cabul. Há cerca de 430 milhões de crianças a viver em zonas de guerra. E temos de as ver, temos de nos chocar, temos de querer saber, e temos de perceber qual é o nosso papel enquanto cidadãos do mundo para que a mudança seja uma realidade.

Os EUA invadiram o Afeganistão por pura hipocrisia ocidental. Cegos de raiva e sede de vingança pelo 11 de Setembro, cometeram um dos maiores erros da sua história. Ao tentar vingar quase 3000 pessoas, enviaram para a morte quase tantos soldados americanos e cerca de 500.000 afegãos, na sua esmagadora maioria civis. O extremismo islâmico não fica mais brando quando se mata inocentes com drones como se fosse um jogo de computador. Se pensarmos na execução sumária de Osaba Bin Laden, em Maio de 2011, num país soberano, Paquistão, e a forma como o mundo celebrou, esquecemo-nos de que também assassinaram mulheres e crianças que não cometeram qualquer crime.

Para nós, ocidentais, são despojos de guerra, mas para quem perde os seus às mãos da frieza das balas, é um sofrimento e ódio eternos. O erro não é a forma como os EUA saíram, pois não haveria nenhuma forma bonita de sair, o erro foi lá terem entrado. E se acho que, de uma vez por todas, fica a lição aprendida de que não se controlam países com forças estrangeiras, e com as nossas medidas de civilização, a pergunta que falta responder é: o que temos de fazer pelos locais do planeta onde gente de carne e osso como nós sofre o inimaginável apenas por ter cometido o crime de ter nascido no local errado do planeta?

Às vezes sentimos que devíamos cortar relações e criar sanções com toda a gente. A Bielorrússia pelo jornalista raptado, a Rússia pelo Navalny, a China pelos uigures, a Arábia Saudita pela guerra do Iémen, o Irão pela guerra da Síria, todos os países africanos cleptocratas que deixam morrer as suas crianças, etc., etc., etc. E agora com os taliban. Cortamos relações com toda a gente?

Por mais que seja execrável o regime taliban, o fundamentalismo religioso, a posição humilhante da mulher, que aliás é comum a quase todas as religiões se levadas à letra, o que parece óbvio que aconteceu no Afeganistão é que, passados cinco anos de governação e 20 de resistência, os afegãos escolheram os taliban porque só se ganha uma guerra quando se ganha o coração das pessoas, e um país que é tomado em dez dias dá-nos respostas cabais sobre o que o povo escolheu. Relembro que o período mais violento da história recente do Afeganistão não foi a resistência aos soviéticos, nem a resistência aos EUA e NATO nestes 20 anos, foi a guerra civil de 1992-1996 entre os diferentes grupos de mujahedin, o que a mim me leva a duas conclusões:

  1. a única coisa que os pode unir sem violência é a religião;
  2. por mais triste que seja o regresso ao poder dos taliban, o facto de ter sido quase “sem sangue” é um ponto positivo.

O que é que podemos fazer em relação aos locais do planeta onde o sofrimento humano é atroz, à custa do não respeito dos direitos humanos, e da tirania dos seus líderes? Se não é à força, é com diplomacia. Se não podemos cortar relações com o mundo todo, temos de nos aproximar.

  1. Não podemos receber todos os refugiados do planeta. A prioridade da ajuda tem de ser in loco. O nosso esforço principal tem de ser capacitá-los para que possam erguer o seu próprio país.
  2. Temos de apoiar organizações não governamentais (ONG). Todas as que tenham coração. As ONG conseguem passar barreiras que mais ninguém consegue. Conquistam resultados no imediato e deixam os saberes nos locais.
  3. Temos de cultivar o nosso sentido de cidadania mundial. Cada vez que votamos, temos de nos lembrar de que somos oito mil milhões. Fortalecer as organizações internacionais para que possamos ter autoridades globais fortes e com poderes executivos.
  4. Olhar para todos os seres humanos como se estivéssemos a olhar para o espelho.
  5. Educação. A ignorância continua a ser a arma mais letal do planeta.
  6. Sentarmo-nos à mesa. É incrível o poder de uma conversa. É onde nos apercebemos de que há muito mais que nos une do que nos separa.

Se não nos entendemos para resolver a guerra do Afeganistão, da Síria, do Iémen, do Congo ou do Sudão do Sul, como é que estamos à espera de nos entender para salvar o planeta das alterações climáticas?

Passo a passo. Nunca desistir.