Futebol sem paciência

Eu também pensava que o futebol era um jogo de paciência até ter conhecido o Pedro, um miúdo com muitos caracóis e ainda mais tiques esquisitos, que morava no 2.º andar do Lote 20.

Como tantas outras crianças que cresceram naquela época desoladora entre a extinção dos Dinossauros e a invenção da Internet, o Pedro passava o dia na rua e tinha duas ocupações.

De manhã, punha-se a subir e a descer as escadas do prédio, dois degraus para cima, um degrau para baixo, depois troca e repete, e os minutos a passar. Era como se estivesse a pensar sobre as grandes questões da vida, mas com as pernas – um Jean-Paul Sartre do CrossFit.

Depois, do início da tarde ao fim do dia – quando se ouviam os primeiros acordes de sucessos como “Ó Manel Joããão!” e “Ó Carlos Auguuusto!” –, o Pedro jogava à bola como o *asterisco*.

Era o Maradona na Argentina e o Pedro na nossa rua. E só alguém com muitos cromos suplentes tinha coragem para apostar no tipo que subia e descia escadas como uma pessoa normal.

A coisa era tão ridícula que nós pensávamos que o futebol a sério só podia ser mesmo assim como o Pedro o jogava; menos do que aquilo, com muita paciência e passes para o lado, era curling.

(Certa vez, a minha equipa ganhou à do Pedro num jogo em que tudo nos correu bem, principalmente o facto de o Pedro não ter jogado.)

Vem isto a propósito da falta que o Pedro fez à selecção portuguesa no Euro 2020.

A certa altura, ali pelo Inglaterra-Dinamarca das meias-finais, os comentadores de futebol exultavam com as peripécias do jogo.

Dei comigo a pensar no ponto a que chegámos:  um jogo entre duas equipas que atacam e defendem, limitando-se a cumprir os mínimos do desporto a que chamamos futebol, é hoje, para muitos portugueses, uma obra de arte.

Melhor assim, para quem o segredo da vida é nascer já com baixas expectativas. Em 2024, basta que a selecção apareça no Euro sem paciência e com menos passes para o lado, e também eles serão artistas.

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