Os tubarões-anequins, os touros bravos e o logro

Provavelmente ficarão surpreendidos com os rios de dinheiro que turistas – do mundo inteiro – estão dispostos a pagar para verem estes animais magníficos sossegados, no seu ambiente natural, no mar e em terra.

Possivelmente estarão a interrogar-se que terão tubarões-anequins e touros bravos a ver uns com os outros, para além do facto de ambos terem arcaboiço para colocar os mais incautos numa unidade hospitalar de cuidados intensivos... A verdade é que as actividades comerciais que lhes foram impostas estão ambas envolvidas numa teia de logros e falsidades que se têm vindo a perpetuar ao longo da história recente. E, se esse chorrilho de mentiras passou pelo crivo (bem largo) de uma população largamente desinformada durante décadas (para não dizer séculos), já está mais do que na hora de as redes sociais fazerem o seu trabalho e permitirem à população actual, mais moderna, abrir os olhos de uma vez por todas. Já agora, seria útil se esses esclarecimentos chegassem à cúpula da classe dirigente, que tem obrigação de pôr travão a duas das maiores atrocidades ambientais de que há memória.

Antes de mais, chamemos a atenção para o facto que não estamos a falar de pobres orangotangos que lutam tristemente contra bulldozers na distante selva de Bornéu, que vai lentamente dando lugar a plantações de palmeiras, para que possamos continuar a barrar as nossas torradas com deliciosas pastas chocolatadas, atestadas de óleo de palma no processo de fabricação. Muito pelo contrário, este fenómeno é intensamente português e passa-se nos nossos quintais: um marítimo e outro nas lezírias ribatejanas, que bem conheço porque cresci (a sonhar com uma carreira a estudar tubarões) no meio do Cartaxo.

Comecemos pelos anequins – também conhecidos como makos –, animal poderoso e um dos peixes mais rápidos nos oceanos. No entanto, milhões de anos de evolução ditaram que este, e muitos outros, tubarões tivessem desenvolvido uma estratégia reprodutiva que favorece a “qualidade”, em vez da “quantidade”. Esta estratégia, conhecida no meio científico como “K”, viria a ser adoptada pelos mamíferos – como nós – milhões de anos depois de os tubarões a terem desenvolvido neste nosso planeta, outrora tão estável. E assim é que os mamíferos, e a maioria dos tubarões de grande porte – como os anequins – têm um número muito reduzido de crias a cada dois, três, ou mais anos.

Como se pode adivinhar, da mesma forma que a caça às baleias (de reprodução igualmente lentíssima) levou este grupo de animais à beira da extinção em poucas décadas, ninguém deveria ficar surpreendido por vermos o mesmo a acontecer com os anequins e outros tubarões. Só que, em vez de estar a acontecer numa época em que o conhecimento era transmitido em jornais que poucos tinham tempo, ou dinheiro, para ler, este massacre está a ocorrer numa época em que dois terços da população mundial têm no bolso um equipamento igual àquele em que está a ler estas linhas e que nos conecta como nunca antes na história da humanidade.

Mas a parte verdadeiramente frustrante poderá ser o facto de que, há 150 anos, havia um “motivo” por trás desta matança infernal, porque as baleias eram caçadas para lhes extrair óleo, que iluminava as cidades onde habitavam milhões de habitantes – entre outras aplicações –, antes de começar a ser sintetizado de forma industrial e mais barata. Hoje em dia matam-se “acidentalmente” 100 milhões de tubarões por ano para colocar postas de espadarte e atum nos balcões frios dos supermercados e sustentar uma indústria que, no caso português, conta com... três dúzias de barcos. Leu bem, não há qualquer engano.

Os anequins, e outras espécies menos icónicas e menos reconhecíveis, vão desaparecer dos mares porque “o sector da pesca tem de ser protegido”, como tanto se ouve dizer. Só que, neste caso, o “sector da pesca” consiste em três dúzias de barcos que se dedicam à captura preferencialmente de espadarte, mas que trazem para terra largas dezenas de tubarões – anequins, tintureiras, e outros – por cada espadarte. Reparem que conheço muitos destes homens e não me dá qualquer prazer apontar-lhes o dedo, até porque os dedos deveriam ser mais apontados a quem compra – e vende – as postas de espadarte e não tanto a quem as captura, que só o faz para meter comida na boca dos filhos.

Mas sejamos pragmáticos. Que sentido faz extinguirem-se espécies para sustentar a actividade de “três dúzias” de barcos? Não seria melhor estes amigos lentamente migrarem para uma actividade que não envolva matar anequins, que ainda nem sequer tiveram oportunidade de se reproduzir, que sabemos ser a esmagadora maioria dos animais capturados, segundo dados de diários de bordo que temos vindo a analisar em conjunto com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas?

Pensemos da seguinte forma, não terão os cidadãos não-pescadores o direito a ter um mar sossegado e com anequins, em vez de um deserto onde, qualquer dia, só há plâncton, alforrecas e pequenos pelágicos, como as cavalas e carapaus? Em que parte da história da humanidade é que se deu carta branca aos donos de embarcações de pesca para limparem os oceanos de tudo o que mexe em nome da saúde do sector económico da pesca que, repito, em Portugal não conta com mais de três dúzias de barcos no caso dos anequins e espadartes?

Saltemos agora para as lezírias, onde os touros bravos podem ser observados, em toda a sua majestade portentosa. É um exercício belíssimo de coexistência da espécie humana com uma raça de bovinos que, em vez de ser criada em currais para se transformar em bifes, tem a sorte de passar a vida num pasto verdejante. Mas essa sorte acaba no dia em que se vêm atirados para dentro de um camião, que os levam a uma arena onde uma multidão aplaude sempre que alguém lhes espeta um ferro no lombo.

Tudo isto, pois claro, em nome da defesa económica do sector e até da raça, que é um dos argumentos mais deliciosos que se ouve nesta discussão. Sector, esse, cuja dimensão se manifesta com uma simples busca no Google por “cartaz tourada”, em que rapidamente percebemos que conta com ainda menos nomes do que os pescadores de espadarte e anequins.

Agora expliquem-me, por favor, que sentido é que isto faz... Andamos a matar anequins juvenis e a espetar ferros no cachaço de touros bravos para – alegadamente – sustentar a actividade de menos de uma centena de empresários em cada sector, sendo que cada um deles tem outras opções para ganhar a vida e pagar ordenados aos seus funcionários. Os amigos tauromáquicos ameaçaram inclusivamente com uma marcha sobre Lisboa caso as touradas sejam finalmente banidas. Eu cá estou ansioso por ver essa marcha, para que possamos efectivamente contar os seus participantes, porque sei que vai causar menos perturbações no trânsito do que qualquer jogo de futebol mediano.

Repito que não sinto um prazer maquiavélico especial em apontar dedos a pescadores, armadores, ganadeiros ou toureiros. Mas, caramba, seguramente que homens dotados da vossa inteligência empresarial conseguirão pagar ordenados sem estarem a matar peixes imaturos ou a espetar ferros em mamíferos sencientes. Experimentem, por exemplo, converter as vossas actividades ao domínio turístico, como muitos dos vossos colegas já fizeram, um pouco por todo o mundo. Provavelmente ficarão surpreendidos com os rios de dinheiro que turistas – do mundo inteiro – estão dispostos a pagar para verem estes animais magníficos sossegados, no seu ambiente natural, no mar e em terra.

No caso dos ganadeiros, podem até experimentar vender a carne de touro bravo, que é um produto gourmet e cuja venda me/nos choca muitíssimo menos do que andar a espicaçar os animais com ferros, meramente para vender bilhetes entre aplausos. Isso demonstra que a extinção da raça touro bravo com o fim das touradas é um argumento tão falso como o tremendo disparate apregoado por um veterinário aficionado que gosta de ir à televisão dizer que “o touro não sente dor” quando leva com uma farpa no lombo? Talvez queira demonstrar essa teoria brilhante espetando farpas (de tamanho proporcional) nos seus cães?

Viremos a página nestes dois capítulos negros que, tal como o da caça desenfreada à baleia, já está mais do que na hora de serem encerrados e darem a vez a capítulos mais azuis, mais verdes e menos ensanguentados. Afinal de contas, estamos a falar de poucas dúzias de empresários que, tenho a certeza absoluta, conseguirão fazer esta transição de forma suave, com ganhos substanciais e consideráveis para todos.

E, já agora, seria também interessante que a nossa classe dirigente entendesse que vai buscar muitos mais votos a uma população que já não é tão ignorante como era há um século e que recompensaria essa mesma classe se a visse tomar medidas que protegem o ambiente natural – e os direitos dos animais –, em vez de rebentar com ele(s).

Deixo-vos três contactos para onde poderão endereçar o vosso apoio a estas causas, porque é importante demonstrarmos aos nossos dirigentes que gostamos mais de ver os anequins vivos no mar, do que mortos em terra, e os touros bravos sossegados na lezíria, do que cheios de farpas e sangue nas arenas: a Presidência da República, o ministro do Mar e a ministra da Agricultura. As vossas mensagens poderão ser tão simples quanto “Estimada Srª. ministra da Agricultura, gostaria de solicitar o seu apoio para a proibição das touradas em Portugal.” Ou “Estimado Sr. ministro do Mar, gostaria de solicitar o seu apoio para a Proposta de Lei que o PAN apresentou”.Permitam-me que termine com o disclaimer de que, embora apoie fervorosamente esta proposta do PAN, este artigo – e todos os outros que já escrevi – e pretendo escrever – são totalmente apartidários.

Muitas vezes perguntam-me, no fim das palestras que dou, “Como podemos ajudar?” Aqui fica a resposta e mais simples não podia ser: enviem a vossa opinião à classe dirigente que, de outra forma, só ouve as opiniões dos lobbyists dos respectivos sectores económicos. Os anequins e os touros bravos precisam que alguém fale por eles e agradecem-vos.

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