Quanto pior, melhor!

Hoje, a glória maior, para a generalidade das criaturas, é conseguir ser “polémico”. E tanto faz que seja lá no bairro, nas redes sociais, nas páginas de imprensa, nas salas de julgamento ou nas grandes arenas onde se discutem destinos nacionais ou globais.

Gradualmente, e perpassando todos os ambientes, assistimos à instalação de um clima de radicalização das conversas e das opiniões, bem como das atitudes perante a vida e, sobretudo, perante os outros.

E não me refiro, sequer, à radicalização política, ideológica ou religiosa, mas sim a essa radicalização quotidiana, sobre os temas mais banais, nos julgamentos do cidadão comum.

Neste moderno radicalismo, se nos preocupamos com tentar observar e interpretar a realidade nas suas diferentes perspectivas e nas suas múltiplas nuances, se nos recusamos, pelos princípios de humanismo mais básicos, a rotular, categorizar e generalizar pessoas e factos, isso só pode significar que estamos obcecados com o “politicamente correcto”, que somos uns panhonhas, uns cobardes, que somos, enfim, uma espécie de amebas sociais, vogando, mansamente, nos estagnados e sombrios charcos da passividade.

O mesmo se passa se formos moderados no trato, se preferirmos não litigar, e se convivermos, com urbanidade e gentileza, com toda a gente. Somos, de imediato, apontados como criaturas destituídas de vértebras, não merecedoras de respeito, nem mesmo de tolerância (que, por acaso, e apesar de tão enaltecido, constitui na sua essência, esse sim, um conceito abominável, mascarado de bondade, e fundado em tenebrosos pressupostos de superioridade intelectual e moral).

Merecedoras, somente, do desterro e, quem sabe, da fogueira, como condenação por esse novíssimo crime que é o do “delito de não-opinião”.

Sim, porque ao contrário de outras épocas, em que se condenava por delito de opinião, o que se persegue e condena, nestes tempos em que vivemos, é o “delito de não-opinião”, compelidos que somos, todos, a opinar.

E compelidos a desempenhar essa actividade opinativa sobre todas as matérias, mesmo aquelas que não nos dizem qualquer respeito ou que, pelo contrário, apenas a nós, e à nossa mais estrita intimidade, interessam e que, por isso, não têm de ser trazidas a terreiro, em bramidos revoltados e descabelados, numa sanha persecutória capaz de fazer corar de vergonha o próprio Torquemada.

Os ventos sopram a favor dos que, simplesmente, fazem barulho e se colocam sob os holofotes, perorando, ao sabor das modas diga-se, quer acerca de passados que confundem, numa ignorância e num cronocentrismo a todos os títulos confrangedores, quer sobre presentes que desconhecem, porque distantes, demasiado distantes, dos seus circuitos, das suas rotinas ou, talvez mais apropriadamente, dos seus umbigos. 

Aprendi, por educação familiar e, depois, por formação académica, a tentar compreender os factos pelos seus diferentes ângulos; a tentar esse exercício – sempre difícil e, se tomado em sentido literal, verdadeiramente impossível – de me colocar no lugar do outro; a reflectir antes de falar e a ponderar os efeitos não só do que digo, mas também do modo como o digo.

E aprendi, sobretudo, a aprender. A aprender com os mais velhos e com os mais sabedores.

E a respeitá-los, de modo genuíno, por essa sua sabedoria, num gesto muito distinto do tipo de subserviência interesseira e sabuja que, hoje, se dirige aos “espertalhaços”, essa sempre fascinante e moderna categoria de “mais aptos” no desenrascanço, na trapaça e na estridência do discurso.

Claro que nesse respeito pelos outros e pelos seus saberes, ou melhor, como inerência do próprio respeito, estava, também, a liberdade de discordar. Mas discordar de maneira fundamentada, esclarecida e cordata. Porque o respeito e a liberdade pressupõem-se mutuamente e é também mutuamente que se atribuem sentido.

Parece-me, no entanto, que tudo isto está ultrapassado, em nome das gritarias seguidistas e acéfalas, que, como correlato de tão profusa e intensa actividade opinativa, consubstanciam uma das aspirações maiores desta nossa contemporaneidade: “ser polémico”! 

Hoje, a glória maior, para a generalidade das criaturas, é conseguir ser “polémico”. E tanto faz que seja lá no bairro, nas redes sociais, nas páginas de imprensa, nas salas de julgamento, ou nas grandes arenas onde se discutem destinos nacionais ou globais. Afinal, é só uma questão de escala, que pouco ou nada importa, quando o que está em jogo é a possibilidade de conquistar esse supremo atributo da actualidade.

O problema é que sucede, com este “ser polémico”, relativamente ao ridículo, o mesmo que sucede com o “ser frontal”, relativamente à grosseria: as fronteiras são ténues, demasiado ténues, e o risco de resvalar é enorme. E os exemplos desses resvalos abundam, para todos os gostos e vontades…

Mas, bem vistas as coisas, talvez isso não constitua um problema. É que, afinal, num tempo em que o “ser polémico” é o mais importante, tudo está bem desde que falem de nós.

E, já agora, que falem mal, muito mal mesmo, porque, como se calcula, neste afã de “ser polémico”, quanto pior, melhor!

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