Cabo Delgado: melhorar a vida das pessoas

No espaço dos países que falam português, não existe nada comparável desde o final da guerra civil em Angola em 2002. Temos a responsabilidade de tentar ajudar de alguma forma, a pensar e discutir alternativas de ação.

Em Pemba, cidade capital de Cabo Delgado, tive o gosto de recrutar em 2009 a minha melhor equipa de trabalho de campo de sempre. Entre eles, estavam o Sr. Imamo, muçulmano, instruído no Sudão, antigo militar do exército colonial português, e o Sr. Najopa, cego de um olho, antigo militar da Frelimo na guerra pela independência e na guerra civil contra a Renamo, ferido várias vezes em combate. Líderes naturais, excelentes no trabalho em equipa em condições difíceis, eram os melhores amigos um do outro. Eles ensinaram-me que Cabo Delgado é terra de disputas antigas, mas, talvez por isso, é também terra de pessoas habituadas a fazer pontes, incrivelmente hospitaleiras e amigáveis.

Não imaginava então que, poucos anos depois, Cabo Delgado se transformaria num palco de guerra. Neste momento já conta com mais de 2500 mortes e 700.000 deslocados. O Islão radical com ligações internacionais, se não foi uma causa profunda do surgimento deste problema, está agora cada vez mais a ele associado. Este é um drama humano que exige a nossa maior atenção como cidadãos e, portanto, também a dos nossos governantes em Portugal. No espaço dos países que falam português, não existe nada comparável desde o final da guerra civil em Angola em 2002. Temos a responsabilidade de tentar ajudar de alguma forma, nem que seja só a aprender sobre o assunto, a pensar e discutir alternativas de ação.

O centro NOVAFRICA na Nova School of Business and Economics tem estado a fazer precisamente isto em Cabo Delgado, já bem antes de a violência começar em finais de 2017. Num primeiro projeto, realizado em 2016/17, entretanto publicado na American Economic Review, avaliámos o impacto de uma campanha informativa sobre gestão de recursos naturais ao nível das comunidades em todo o Cabo Delgado, patrocinada por uma série de organizações governamentais e não governamentais locais. Esta intervenção mobilizou as pessoas, trouxe algum optimismo económico e melhorou os níveis de confiança no Estado. No entanto, o mais importante é que esta sensibilização ao nível das comunidades causou uma menor incidência de conflito quando este começou, medida através dos dados georeferenciados do ACLED nas proximidades das comunidades onde a campanha teve lugar. São factos estatísticos dificilmente refutáveis. A implicação é simples e tem sido repetida frequentemente nestes anos em Moçambique e onde nos querem ouvir: se queremos prevenir conflito, vale a pena falar com as comunidades, estar presente, ouvir as pessoas, lá onde o Estado chega com dificuldade. Provavelmente, vale a pena trabalhar a sério em dar oportunidades económicas a estas pessoas.

Já em contexto de conflito, realizámos em 2019 um projeto em Pemba, em colaboração com o Conselho Islâmico de Moçambique (CISLAMO), parceiro em múltiplos projetos de investigação anteriores. Revelando a sua postura de sempre em prol da coesão social moçambicana, o CISLAMO promoveu uma sensibilização de cariz religioso junto de jovens do sexo masculino recrutados em mesquitas de Pemba. Esta sensibilização procurava desmontar os fundamentos Islâmicos dos radicais por contraste com os princípios de paz do Islão. O nosso trabalho avaliou o impacto desta sensibilização em comportamentos anti-sociais. A ideia era testarmos políticas que prevenissem o recrutamento de insurgentes com base no radicalismo Islâmico. Descobrimos que sim, que o comportamento anti-social destrutivo diminuiu em face da iniciativa do CISLAMO. A implicação é simples, mais uma vez: chegar aos jovens muçulmanos de Cabo Delgado com informação é importante como prevenção de conflito, e as ONGs locais, em particular as muçulmanas, estão extremamente bem colocadas para o fazer.

O que se tem feito para tentar resolver este problema? É fácil criticar o Governo Moçambicano. No entanto, quero aqui dizer que estou com o Governo Moçambicano – acho aliás que devemos estar todos com o Governo Moçambicano, que é quem tem algum, embora não muito, poder de decisão. Explico. O Governo Moçambicano encara este problema como um problema de segurança, o que é obviamente verdadeiro. No entanto, este é um problema de resolução militar difícil, mesmo para os melhores exércitos do Mundo, como se tem visto no Médio Oriente. Ninguém quer arriscar morrer e os militares moçambicanos são provavelmente dos mais impreparados para lidar com a situação. E quando a impreparação grassa, o risco de alienar e perder o apoio das populações locais, acentuando o problema, escala. As dificuldades impostas à presença de jornalistas na região estão provavelmente relacionadas com este risco. Neste contexto, o Governo Moçambicano tem tentado o que se sabe, e de forma errada, nomeadamente quando trouxe mercenários de outros países para Cabo Delgado e permitiu que os ataques insurgentes se eternizassem. Provavelmente uma força internacional dotada de uma estratégia de longo prazo fará melhor, mas é preciso ter cuidado: as melhores forças disponíveis terão provavelmente interesses económicos no gás natural de Cabo Delgado. Se eu estivesse no Governo Moçambicano, também teria dúvidas em trazê-los.

Quero sublinhar uma outra estratégia complementar para resolver este conflito, esquecida com frequência no debate sobre este assunto, mas não menos importante: melhorar a vida das pessoas. Esta estratégia é consistente com a evidência que recolhemos em Cabo Delgado, tem provas dadas em tudo o que sabemos sobre prevenção de conflito, nomeadamente no Médio Oriente (exemplo: https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/661983), e tem alcance de longo prazo. Melhorar a vida das pessoas obviamente implica ligar com as comunidades, informar e incluir, dar oportunidades económicas, tratar bem os refugiados, promover a sua boa inclusão nas cidades quando for o caso (o que implica ligar bem com o poder local), mobilizar as ONGs locais para trabalhar com os jovens em risco de recrutamento pelos insurgentes. Para isso, é preciso usar a bazuca que as organizações internacionais (ex. Banco Mundial) têm estado a construir (sim, ela existe). A dificuldade, depois de muitas décadas de dinheiro de ajuda mal usado, é que ninguém vai deixar disparar a bazuca sem condições. E para usar estes recursos e envolver as ONGs é preciso que o Governo Moçambicano pense um pouco menos em segurança e deixe abrir Cabo Delgado um pouco mais do que até aqui, interna e internacionalmente. Mas criteriosamente também, nomeadamente àqueles que querem de facto ajudar, com o interesse do Povo Moçambicano em mente.

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