Ode ao parque

Dizem que é no meio termo que está a sabedoria. Dizem ainda os que sabem que os sítios são as pessoas, que são elas que fazem os sítios, quem lhes dá carácter, espírito, personalidade. E a tão falada, mas que ninguém percebe assim tão bem, energia.

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Nuno Ferreira Santos

Toca bossinha no parque e está sol, um sol tímido de Maio. Um homem bem moreno e malhado malha o corpo desenhado um bocadinho mais, ao som de Elis Regina, das vassouras ritmadas e dos pássaros que piam sem pressa. É sábado de manhã, ainda nem 10h são, no jardim Cerca da Graça. Outro homem chega, a falar o que parece alemão ou holandês, pela aspereza do acento. Vem de auscultadores postos, máscara no queixo e roupa de quem vai fazer desporto e está motivado para isso. Lá ao fundo, correm duas miúdas nos seus 20 e poucos, com os seus dois cães felizes, pouco incomodadas com a relva molhada e a rega ligada.

Ainda mais longe, chega de fato de treino bordeaux o homem que medita. O homem que medita, pelo menos sempre que o vejo, e não são poucas vezes, é tão clássico como o dono do cão do boomerang, o gang da fofoca pesada ou as bifas em biquínis pequenos, mas grandes demais para os olhares curiosos dos músicos e dos mais ou menos artistas, dos mais ou menos nómadas.

Não importa quantas vezes cá venho, fico sempre fascinada com estes personagens do parque, mesmo sabendo que sou uma delas. É sempre mais simples ver as (nossas) coisas nos outros. Fico também impressionada, sempre, com as diferenças na maneira como vejo o parque. De manhã e ao final do dia, durante a semana e ao final dela, faça sol ou chuva, nuvens ou qualquer tempo.

Respiro. Olho em volta mais uma vez e gostava de conseguir captar tudo. Os sons da música a mudar a cada três, cinco, minutos impacientes, o ritmo da corda que é saltada, os verdes da relva que contrastam com os prédios quase todos brancos e a igreja lá em cima no Miradouro da Graça. Expiro e distraio-me com o som de garrafas de vidro a serem tiradas dos caixotes do lixo, como quando se vai ao ecoponto verde.

Distraio-me ainda com o tal homem moreno, com a sua dedicação e foco, não sei se ao corpo se à vida. Importante, isso, ter foco na vida, sobretudo em tempos de pandemia. Mas também alguma flexibilidade, como o bailarino que chega e parece que deixou as articulações em casa.

Dizem que é no meio termo que está a sabedoria. Dizem ainda os que sabem que os sítios são as pessoas, que são elas que fazem os sítios, quem lhes dá carácter, espírito, personalidade. E a tão falada, mas que ninguém percebe assim tão bem, energia.

Temos que ir e voltar aos sítios, isto se queremos ver os sítios. No parque, a varanda dos que não a têm, o quintal mais democrático que todos recebe, o dia desenrola-se ao ritmo do tempo, respeitando os ciclos, os hábitos, a fauna e a flora.

Fascina-me particularmente o terceiro, sobretudo em período de desconfinamento. Após um par de meses fechados, penso neste sábado que “esta gente toda estava fechada em casa.”

Bolas, esta gente toda esteve fechada em casa. Por isso, deixemo-los estar, deixemo-los ser, deixemo-los viver.

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