A viagem que o vírus nos faz desejar

É importante estar constantemente atento às banalidades do quotidiano, porque é nelas que se escondem as lutas universais.

À Joana Ramos.

É no reflexo do olhar dos outros que vemos melhor o mundo. Tive um professor que dizia que todo o grande cronista acaba por dar por si a escrever sobre o facto de não ter nada sobre o que escrever. Como eu não sou um grande cronista, não tenho a ousadia de escrever sobre o nada, e por isso nasce todas as semanas a angústia de não apontar para onde todos os outros apontam e, mesmo assim, saber discernir entre a originalidade e o absoluto aborrecimento. Por isso, é importante estar constantemente atento às banalidades do quotidiano, porque é nelas que se escondem as lutas universais.

Há um par de dias, uma boa amiga comentou, entre dois copos de vinho, que há lugares que parecem propositadamente inóspitos. Lugares como os aeroportos ou as estações de serviço. Lugares onde nunca nos sentimos bem-vindos. Lugares onde fazemos o que temos a fazer, e de onde zarpamos a todo o gás.

Lugares onde nunca acontece nada memorável, onde tudo é fugaz e funcional, e onde até os funcionários parecem ter instruções para nos tratar propositadamente mal, para que não fiquemos ali a fazer sala. Lugares dos quais nunca havemos de dizer “vamos ali jantar?” ou “aconteceu-me uma coisa extraordinária enquanto comprava um café mesmo antes de fazer check-in". Lugares destes. Não-lugares.

Talvez não seja particularmente estranho que estes dois exemplos em concreto de não-lugares (no decurso da conversa, não fomos capazes de encontrar outros) estejam relacionados com o acto de viajar. São entrepostos que estão ali só para cumprir com uma necessidade inescapável. Agora que penso nisso, talvez nos tratem mal porque também não os tratamos bem. Utilizamo-los em último caso, são um meio para atingirmos um fim bem mais prazeroso. São lugares com falta de auto-estima, e essa amargura cheira-se a léguas.

Acontece que vivemos hoje um ponto de viragem, um momento em que sair da cidade é um bálsamo, como se a viagem se tratasse de uma namorada de longa data com quem tivemos uma discussão agreste e alcançámos agora uma paz renovada, e até os não-lugares têm potencial para ser apreciados. Com tanta quarententa, há quantos meses, há quantos anos, não pisamos o chão lustroso de um aeroporto nem comemos uma sande de plástico em Aveiras?

Arrisco dizer que até dos não-lugares sentimos falta, de tão sedentos que estamos de um passeio para longe das nossas paisagens de sempre. Até da frieza do senhor a quem pedimos trinta paus de gasóleo simples ou da senhora que tenta impingir-nos um perfume ao dobro do preço civil na zona de acesso às portas de embarque. Rumo aos novos lugares que nunca bebemos, haja até sede pelos não-lugares de sempre.

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