O fim último do corpo da mulher

Esta objectificação internalizada faz parte de uma socialização que não é exclusiva às gerações da era do capitalismo, mas que, parafraseando Engels, está intrínseca em toda a estrutura do grande, resiliente e imortal patriarcado.

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Estou a escrever isto porque sou mulher precária, e já me ocorreu — mais que pontualmente — criar uma conta no famoso OnlyFans, de forma a comercializar o meu corpo, por falta de alternativa de fazer parte de um grupo de remuneração de produção social. Dado isto, interrogo-me do porquê de a minha consciência ter recorrido em desespero directamente à mercantilização do meu corpo para produção de lucro.

Não será de agora, de viver no século XXI, uma vez que instrumentos semelhantes com o mesmo propósito existem desde os primórdios da sociedade ocidental, instrumentos estes até mais ancestrais do que o próprio capitalismo e mercantilismo. Relativamente a um dos instrumentos de venda do corpo mais normalizado e “tradicional”, enquadra-se a prostituição, da qual já tratava Engels, no seu trabalho antropológico A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Engels localizou a fundação da prostituição como paralela à constituição da família patriarcal e monogâmica de divisão de trabalho entre os sexos e opressão do homem sobre a mulher. Citando: “Ao estado selvagem corresponde o matrimónio por grupos; à barbárie, o matrimónio sindiásmico; e à civilização corresponde a monogamia com os seus complementos: o adultério e a prostituição”. E dizia ainda: “No mundo moderno, a prostituição e a monogamia ainda que antagónicas, são inseparáveis.”

O debate sobre a legitimidade dos trabalhos de índole sexual já não é de agora, mas tendem a deixar de parte algumas nuances: como o trabalho reprodutivo e a “doação de óvulos”. Para mim, todas estas actividades, em conjunto com os trabalhos de indução do prazer sexual, contêm transversalmente a questão da produção de lucro através do corpo feminino “cis”, por escassez de alternativas. Neste sentido, muitas mulheres não têm que ser obrigadas por figuras externas a participar deste tipo de actividade remuneratória. Passa, no entanto, por uma inconsciente internalização de que se temos um corpo feminino, ele servirá, ao fim do dia, para nos sustentar ou aos nossos pares.

Esta objectificação internalizada faz parte de uma socialização que não é exclusiva às gerações da era do capitalismo, mas que, parafraseando Engels, está intrínseca em toda a estrutura do grande, resiliente e imortal patriarcado. Actualmente, o patriarcado não é o único culpado no fomento da mercantilização do corpo feminino: a ele se juntou o Grande Capital e seguem os dois juntos a entreajudarem-se na reprodução da objectificação e commodification do corpo da mulher, como se de gado se tratasse.

Depois desta minha consciencialização, a sociedade que não espere que pare de vender a minha imagem como mulher, não relativamente aos instrumentos que expus, mas a outras infinitas vicissitudes que me tornam num objecto tão ou menos valioso que um automóvel. Vivemos no sistema que vivemos, não deixarei de querer sobreviver, no entanto, parte do processo de emancipação feminina é chegar à raiz das questões. Espero que todas, juntas, consigamos.

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