Temos de comer menos peixe, mas variar mais na escolha de espécies

O elevado consumo per capita e a escolha recorrente sobre um lote restrito de espécies (apesar da diversidade que diariamente chega aos portos nacionais) pintam um cenário negro: por uma questão de sustentabilidade, é importante alterar os padrões de consumo de pescado dos portugueses. Entidades oficiais, cientistas e ONG ajudam a traçar um caminho possível.

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rui farinha/NFactos

O pescado é, por diferentes razões, uma das melhores fontes de proteína animal a que temos acesso, em particular quando é proveniente de produção selvagem. Todavia, os portugueses, os terceiros maiores consumidores de peixe per capita a nível mundial (60,9 kg), nunca tiveram necessidade de aconselhamento dos nutricionistas para chegar a tal conclusão. Come-se peixe como um gesto de cultura. E de bom gosto. Pode faltar frango, porco ou vaca, mas peixe – fresco, salgado, enlatado ou congelado –, isso nunca.

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O pescado é, por diferentes razões, uma das melhores fontes de proteína animal a que temos acesso, em particular quando é proveniente de produção selvagem. Todavia, os portugueses, os terceiros maiores consumidores de peixe per capita a nível mundial (60,9 kg), nunca tiveram necessidade de aconselhamento dos nutricionistas para chegar a tal conclusão. Come-se peixe como um gesto de cultura. E de bom gosto. Pode faltar frango, porco ou vaca, mas peixe – fresco, salgado, enlatado ou congelado –, isso nunca.

Em tese, este seria um hábito louvável, tanto mais que nos portos nacionais descarregam-se anualmente quase duzentas espécies, valor que é bem capaz de colocar Portugal em primeiro lugar no ranking mundial da diversidade de pescado capturado. Mas a realidade é outra. E preocupante. Cerca de dois terços do peixe que comemos é importado. Peixe selvagem de espécies com stocks que nem sempre respeitam o conceito de Rendimento Máximo Sustentável – o que significa que colocamos em risco o potencial reprodutivo da espécie – e peixe de aquacultura que, pela distância geográfica onde é criado e pelos impactos que produz no ambiente (poluição e necessidade de alimentação a partir de recursos selvagens), liberta uma enorme pegada carbónica. Comer uma faneca, apanhada em Portugal, salmão produzida na Escócia ou até uma posta de pescada apanhada na América do Sul são escolhas que, do ponto de vista de poluição planetária, fazem uma diferença tremenda.

Se a estes dois problemas estruturantes (consumos históricos e importações elevadíssimas) acrescentarmos o facto de os portugueses direccionarem insistentemente as suas escolhas para meia dúzia de espécies, facilmente se conclui que temos problemas no curto, médio e longo prazo se nada for feito ao nível da mudança de hábitos num país que não vive sem peixe.

E é por isso que entidades oficiais, cientistas e responsáveis das ONG estão de acordo nos seguintes princípios para inverter o cenário actual e, em consequência, criar condições para que a pesca seja sustentável a longo prazo. Primeiro, é fundamental reduzir o consumo per capita de peixe selvagem e de aquacultura (em Portugal e a nível global). Depois, os consumidores terão de diversificar o consumo de espécies. Devemos comprar peixe que passou pelas lotas nacionais. O Estado tem de investir mais na investigação ligada aos recursos marinhos, condição indispensável para a tomada decisões sobre o esforço de pesca e a gestão dos stocks. É necessário criar mecanismos de informação eficientes para os consumidores sobre estado dos stocks nacionais e internacionais. E devemos familiarizar-nos com os conceitos de certificação ou de co-gestão de espécies.

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O consumo anual de peixe per capita em Portugal excede os 60 quilos. É o terceiro valor mais elevado a nível mundial. daniel rocha

Reduzir o consumo

Alguns leitores colocarão a pergunta: comer pescado selvagem não é um comportamento inteligente e que contribui para reduzir a tal pegada carbónica face a outras proteínas animais? Sim, é verdade. Afinal, apanhar um quilo de peixe selvagem equivale apenas a dois por cento da quantidade de CO2 necessária para a produção de 1 quilo de carne vermelha em regime intensivo, segundo dados do Marine Stewardship Council. Mas a verdade é que se continuarmos a retirar peixe dos oceanos ao ritmo a que fazemos actualmente, vamos eliminar espécies e destruir a biodiversidade marinha.

Em termos globais, e de acordo com dados da FAO, nos últimos 30 anos o consumo de peixe aumentou 122 por cento. Nos países em vias de desenvolvimento, esse mesmo consumo per capita era, em 1961, de 5,2 quilos. Em 2017 situou-se nos 19,4 quilos, sendo que muito desse peixe resulta de capturas em oceanos longínquos.

Para Gonçalo Carvalho, coordenador executivo da ONG dedicada à conservação dos oceanos Sciaena, “já nem estamos perante questões de opinião, mais ou menos conservacionistas ou mais ou menos defensoras da diversificação de fontes de proteína para alimentação humana. Estamos perante factos: o mar, como é explorado, não tem a capacidade de produzir peixe em modo sustentável para a actual população e, claro, muito menos para alimentar cerca de 10 mil milhões de habitantes em 2050.”

Neste ponto da discussão, entra em campo a aquacultura como modelo alternativo. Como em qualquer sistema produtivo, há boas e más práticas, sendo que, na sua generalidade, os problemas ambientais para determinadas espécies são enormes. Problemas nos locais das próprias explorações (contaminações, pragas, necessidade de utilização de antibióticos e altas taxas de mortalidade) e problemas de sobreexploração de espécies selvagens necessárias para alimentação dos peixes em cativeiro. Convém registar que, de acordo com a FAO (a Agência das Nações Unidas para a alimentação e agricultura), a produção de aquacultura cresceu 97 por cento na última década.

E se é certo que cada espécie tem necessidades de alimentação variada e se também é verdade que muitas rações começam a incluir nas suas fórmulas mais quantidade de proteína vegetal, a relação entre 1 quilo de peixe produzido versus a quantidade quilos de peixe selvagem consumido no conceito que os ingleses cunharam de FIFO (fish in/fish out) – é impressionante. Exemplos: para se produzir um quilo de atum serão necessários 10 quilos de peixe selvagem; para se produzir 1 quilo de dourada são necessários 4 quilos de peixe selvagem. No caso do salmão, e tratando-se de uma espécie que provoca debates sem fim, um trabalho da Global Aquaculture Aliance, organização dedicada à defesa dos interesses da aquacultura, refere valores FIFO que tanto podem ser 3 quilos de peixe selvagem por cada quilo de salmão como 10.

Por questões de transparência e de liberdade de escolha do consumidor, talvez não fosse má ideia obrigar cada produtor de aquacultura a fornecer informação rigorosa sobre esta questão.

Seja como for, “com tanta variedade de peixe que existe em Portugal, não vejo por que razão temos de comer peixe de aquacultura, salienta Gonçalo Carvalho. Mas se tal tiver de acontecer, que seja peixe de pisciculturas nacionais. Ao menos reduz-se a pegada carbónica.”

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Em aquacultura, a produção de um quilo de dourada exige o consumo de 4 quilos de peixe selvagem. virgílio rodrigues

Diversificar as escolhas

Diversificar a escolha de peixe é, provavelmente, o comportamento que mais pode contribuir para reduzir a pressão sobre espécies com stocks baixos, débeis ou até desconhecidos. E Portugal, ao contrário de muitos países, tem muito por onde escolher.

Repare-se neste paradoxo: por ano descarregam-se quase duzentas espécies nos portos nacionais, mas se fizermos bem as contas, quando se vai às compras ou ao restaurante, só interessa meia dúzia de espécies. Quem tem poder de compra não dispensa as espécies ditas “nobres”, e quem tem de fazer contas à vida atira-se às espécies populares, mas, ainda assim, quase sempre as mesmas.

A restauração segue no mesmo sentido. Casas de luxo só servem peixe de robalo para cima (ninguém está a ver um chef de renome servir uma tremelga ou uma xaputa) e nas casas populares o peixe selvagem passou a dar lugar a peixe de aquacultura. Só em restaurantes em zonas piscatórias podemos encontrar ementas com algumas espécies invulgares. Ferreiras, fanecas, solhas e coisas assim.

Em parceria com outras instituições, a Docapesca tem realizado iniciativas de divulgação de espécies populares (casos da cavala e do carapau), e algumas com impacto na sociedade, mas há claramente necessidade de alargar a estratégia a mais espécies. E quem são os actores capazes de começar a mudar os hábitos dos portugueses? Os chefs – as estrelas do nosso tempo.

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O trabalho dos chefs na promoção de peixes menos habituais poderá ter um papel fundamental na alteração dos padrões de consumo. Na imagem, a cavala trabalhada com honras de alta cozinha, pelo chef Bertílio Gomes, na edição de 2017 do festival Peixe em Lisboa. enric-vives rubio

Comprar peixe que vai à lota (e o problema da pesca lúdica)

Ivone Figueiredo, responsável pelo Departamento do Mar e dos Recursos Marinhos (DMRM), do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), nunca se esquece de colocar no seu discurso sobre defesa do equilíbrio dos stocks de pesca a fuga à lota e a pesca lúdica. Não por uma embirração burocrática qualquer, mas porque “todo o peixe que é descarregado em lota está em conformidade com as regras da pesca, além de, claro, ser controlado em termos de segurança alimentar por equipas de veterinários”.

Por outro lado, comprar peixe aos pescadores lúdicos cria um problema aos cientistas do DMRM porque, “como não sabemos quanto é retirado do mar por esta via, e como fazemos recomendações de capturas por espécie com base nas estatísticas fornecidas via Docapesca, podemos incorrer em erros por falta de informação rigorosa”, defende Ivone Figueiredo.

Jorge Gonçalves, investigador da Universidade do Algarve, não dramatiza tanto. A partir de estudos realizados entre a Costa Vicentina e Vila Real de Santo António, entende que “a pesca lúdica, no seu todo, não chegará a um por cento daquilo que é descarregado nos portos nacionais”. Todavia, reconhece que, para determinadas espécies, a realidade é bem diferente. E dá como exemplo o sargo ao longo da costa alentejana. “Para esta espécie, concluímos que os pescadores recreativos retiravam no mar o equivalente a 40 por cento daquilo é vendido em lota. É significativo.”

Embora não tenha dados para outras espécies, o investigador reconhece que aquelas que são mais desejadas por consumidores ou restaurantes em zonas balneares podem ter impacto no total daquilo que é extraído do mar, mas que não se consegue quantificar. E mais: “Se ainda conhecemos alguns dados da pesca lúdica apeada, sobre a caça submarina estamos perante um mistério total. Não é fácil estudar e fiscalizar estas matérias.”

Ivone Figueiredo e Jorge Gonçalves reconhecem que a pesca lúdica é algo que tem peso sociológico em Portugal, sendo, por vezes, uma fonte de sustento para muitas famílias, mas sabem que muitos pescadores ditos lúdicos de lúdico nada têm. De facto, quem não tem um amigo que faz caça submarina e vende o peixe sem factura a um restaurante bonito à beira da praia (e ainda convida para comer um mero ou um lírio) que atire a primeira pedra.

Se Ivone Figueiredo realça a necessidade de maior fiscalização e estudo do assunto, Jorge Alves destaca o trabalho com as associações de pescadores de pesca recreativa. “É certo que não estamos em Inglaterra, em que associações de pescadores até contratam biólogos para estudar as espécies, mas podemos dialogar e sensibilizar os responsáveis dessas associações que, convém dizer, revelam hoje maior sensibilidade para a protecção das espécies.”

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A pesca lúdica coloca problemas à produção de conhecimento para apoio à decisão política. “Como não sabemos quanto é retirado do mar por esta via", "podemos incorrer em erros por falta de informação rigorosa”, explica Ivone Figueiredo, do IPMA. adriano miranda

Investigação e informação

As decisões de quantitativos de capturas para cada espécie são tomadas pelos poderes políticos de cada país, mas têm por base as recomendações de diferentes entidades de investigação científica, que podem ser nacionais ou internacionais, sendo que estas dedicam-se, regra geral, a espécies partilhadas por zonas de marinhas de diferentes países.

A entidade supranacional mais importante é o Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES - Internacional Council for the Exploration of the Sea). Trata-se de uma rede europeia de cerca de cinco mil investigadores, provenientes de 700 organizações de investigação marinha de mais de 20 estados-membros. Em Portugal, é o DMRM que funciona como laboratório de Estado para dar apoio e recomendações para a tomada das decisões políticas.

Como acontece com regularidade, esta questão da definição das quotas e capturas pelas frotas nacionais é uma equação melindrosa e por vezes tensa, visto que em causa estão as teses dos cientistas (por regra mais adeptos da redução do esforço de pesca para protecção dos recursos), os interesses dos pescadores e da indústria transformadora (defensores do direito ao seu trabalho) e as estratégias dos políticos, que têm de fazer os equilíbrios necessários entre as partes.

Nos últimos anos, o DMRM publica um relatório anual sobre o estado dos recursos pesqueiros explorados pela frota nacional do continente, com recomendações a quem dirige politicamente o Ministério do Mar sobre os quantitativos de capturas por espécie.

A definição dos quantitativos de pesca recomendados resulta de modelos que usam diferentes variáveis, sendo que as mais importantes são o conhecimento do estado de stock versus os níveis de capturas reais nos últimos anos.

Diz-nos Ivone Figueiredo: “Se sabemos que existe uma redução de abundância de biomassa de uma espécie e, em simultâneo, registos de capturas constantes ou crescentes, nós aconselhamos a redução das quotas.”

Quando se consulta o referido relatório para o período de 2020, observa-se que existe uma atitude precaucionária nas recomendações, ora com o aconselhamento à manutenção de quotas ora com a indicação à redução. Para o caso da enguia, por exemplo, a recomendação é não capturar um quilo que seja, visto que a espécie está em estado crítico.

Embora com informação detalhada, o documento nem sempre fornece informação sobre os pontos de referência biológica de algumas espécies que os portugueses muito apreciam, como são os casos de robalo, raia, goraz, imperador, salmonete e outros. Situação que leva a que os responsáveis das ONG defendam a redução de quantitativos de capturas para espécies cujos stocks são desconhecidos ou pouco estudados.

A este contra-senso Ivone Figueiredo responde com a questão dos orçamentos sempre escassos para tanto trabalho, mas, também, com a complexidade do problema. “Ao contrário de outros países, capturamos muitas espécies. Por outro lado, cada espécie representa um desafio próprio. Estudar uma espécie que atinge a maturidade aos dois anos não é a mesma coisa que estudar outra que a atinge aos cinco. Estudar uma espécie de profundidade não é a mesma coisa que estudar uma espécie costeira. E tudo isso leva tempo porque, para produzir informação rigorosa para a tomada de decisões, são necessárias séries longas.”

Além do mais, a pesca não é o único factor que interfere com o decréscimo das espécies. A temperatura dos oceanos, a salinidade da água, o alimento disponível e um conjunto de focos de poluição afectam a capacidade de regeneração dos stocks, pelo que avaliar todos os estes impactos e produzir informação robusta é um desafio permanente para os investigadores.

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daniel rocha

Sistemas de informação

Se as entidades oficiais e os ambientalistas apelam aos consumidores para que escolham espécies variadas e evitem aquelas cujos stocks estão em mau estado, é natural que se levantem perguntas como “Que espécies devo consumir?” ou “Onde está a informação para apoiar a minha decisão?”.

A verdade é que tal não existe. Ou, melhor: até existem algumas abordagens sobre o assunto, em particular por parte das ONG, mas não através de um sistema consensual e que resulte do trabalho prolongado no tempo.

A posição da directora do DMRM é que se os pescadores respeitarem as quotas definidas e se o pescado passar pelas lotas nacionais, não haverá razões para os consumidores deixarem de comer peixe. Já os ambientalistas, sempre mais conservacionistas, têm menos problemas em dizer o que podemos e o que não podemos comer, ainda que com variáveis que dificultam uma interpretação rápida dos consumidores numa banca de peixe.

Parceira da WWF, a Associação Natureza Portugal (ANP) tem desenvolvido diferentes iniciativas de defesa dos recursos marinhos e participa no projecto Fish Forward, que, ao defender um consumo sustentado de pescado, promove a melhoria das condições de vida de comunidades piscatórias de países em desenvolvimento.

Quem aceder à página da ANP e entrar no Guia de Pescado poderá ter acesso a uma listagem de peixes acompanhada do conhecido sistema de semáforos (verde, amarelo e vermelho). Em tese, a interpretação seria simples. Na prática, exige leitura detalhada porque uma mesma espécie pode apresentar as três cores. É que uma coisa será comprar uma pescada capturada à linha no norte de Portugal; outra é comer a mesma espécie que foi capturada no Chile por via da pesca de arrasto. Uma coisa é um atum bonito apanhado pela técnica de salto e vara (pesca direccionada com pouco impacto no ecossistema), outra é um bonito apanhado na pesca do cerco.

Rita Sá, responsável da ANP, admite que, nesta matéria, “o mundo não é preto ou branco. Uma coisa é, perante informações robustas e defendidas por diferentes entidades científicas, podermos afirmar que determinada espécie, venha ela de onde vier, não deve ser consumida; outra é dizermos que uma determinada espécie está em sobrepesca num determinado oceano – porque é capturada por uma arte de pesca que causa impactes ambientais consideráveis – mas não noutro oceano onde se utilizam artes de pesca não destrutivas da regeneração da espécie. Se é fácil produzir informação para o consumidor? Não, não é.”

Ivone Figueiredo segue este raciocínio e dá um exemplo. “Há uns tempos houve a recomendação de não-captura de uma espécie de raia. Porque, em Inglaterra, a espécie apresentava níveis de biomassa críticos. Acontece que noutros mares europeus essa questão não tem fundamento. Donde, deve haver precaução nas quotas atribuídas, sim, mas não deve ser proibida a pesca da raia para todos os estados-membros de forma igual.”

Por tudo isso, pedimos à equipa que coordena a Sciaena que sugerisse uma listagem de espécies que podem ser consumidas regularmente e outra com peixes cujo consumo devemos evitar. Como qualquer lista, avança com sugestões de não-consumo que podem entristecer os consumidores. A do bacalhau – seguramente por representar quase metade do valor do nosso consumo per capita de peixe e por contribuir com uma pegada de carbono considerável – nem se fala. Mas se quisermos, de facto, proteger os recursos marinhos para as gerações futuras, isso não se fará sem sacrifícios.

Todavia, como veremos mais adiante, nem todos os stocks de bacalhau estão em mau estado.

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Certificação e co-gestão

Perante a ausência de sistemas de informação que garantam, com rigor, que peixes devemos ou não comer, o selo azul MSC colado nas embalagens de pescado é, provavelmente, a melhor solução para quem quer continuar a comer peixe de consciência tranquila.

Criado há 20 anos, o Marine Stewardship Council é uma ONG inglesa que se dedica à protecção e preservação dos ecossistemas marinhos, através de uma metodologia que garante rigor desde a captura – por via do programa padrão de pesca – até aos pontos de venda, por via do padrão da cadeia de custódia.

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Com base nos critérios definidos pela FAO para a preservação dos oceanos e dos recursos marinhos, o padrão de pesca MSC avalia, a partir de três eixos de actuação, 28 indicadores da actividade pesqueira.

Estes três eixos avaliam o estado do stock da espécie em causa, os impactos que as artes de pesca usadas provocam no ecossistema marinho e as políticas de gestão e conservação que os estados impõem nos seus territórios marinhos. Como nos diz Rodrigo Sengo, do MSC Portugal, “o programa de certificação de uma pescaria não se limita a garantir que o estado de uma determinada espécie é bom. Avaliamos isso, claro, mas também os impactos paralelos da pescaria, bem como a política de governança dos estados, no sentido de percebermos o que está a ser feito para melhorar o stock. E isto porque o nosso objectivo é melhorar sempre o estado dos stocks.”

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O bacalhau, que representa quase metade do consumo português per capita de peixe, é uma das espécies desaconselhadas pela ONG Sciaena. adriano miranda

Vale a pena salientar que não é o MSC quem avalia a pescaria em causa. “Desenhamos o programa, mas, para total transparência, a entidade que pretende ter o selo MSC – uma organização de produtores, por exemplo – tem de contratar um auditor externo que dirá se a pescaria em causa satisfaz os critérios do nosso programa”, salienta o biólogo.

Já o padrão da cadeia de custódia MSC tem por objectivo garantir ao consumidor que o peixe que comprou com o selo azul MSC é alvo de medidas de rastreabilidade de todo o processo produtivo – a fraude em produtos de pescado transformados é um caso sério.

Cada processo de certificação de uma pescaria tem um período de validade de cinco anos, sendo que, anualmente, essa mesma pescaria é submetida a uma auditoria. Se se detectar que algum dos critérios está a ser violado, a pescaria sai dos programas MSC. Quando um consumidor compra um peixe com o selo azul MSC tem a garantia de que está a consumir peixe cujos stocks estão em bom estado, processo que evita a necessidade de leitura fastidiosa de rótulos ou a interpretação algo intrigante do tal sistema de semáforos.

De acordo com fontes do MSC, existirão em Portugal cerca de duzentos produtos de pescado com o selo azul MSC (maioritariamente congelados ou em conserva). Infelizmente, peixe português com esta certificação não existe – já Espanha tem sete pescarias certificadas. Em tempos, a sardinha teve selo MSC, mas como o stock foi colocado em risco, o selo foi retirado.

Quanto à sugestão de proibição de consumo de bacalhau proposta pela Sciaena, Rodrigo Sengo tenta esclarecer: “Imagino que essa sugestão possa ser por três razões: pelo facto de nós, portugueses, termos um valor de consumo per capita alto, pelo facto de haver alguns stocks em mau estado e, também, por causa da sua pegada carbónica. Mas devemos registar que cerca de 80 por cento do bacalhau do Atlântico tem o selo MSC.” E, de facto, em várias cadeias de distribuição existe bacalhau congelado e demolhado (mas com cura tradicional), processado por empresas portuguesas com o selo azul MSC.

Já o conceito de co-gestão de uma espécie é uma metodologia de trabalho que, envolvendo várias entidades (de investigadores a pescadores, passando por autoridades de fiscalização), tem por objectivo garantir que os quantitativos que se retiram do mar não afectam a regeneração da espécie em causa.

Em Portugal só existe uma espécie em processo de co-gestão, o percebe das Berlengas, mas Associação Natureza Portugal está, com diferentes parceiros, a preparar um processo idêntico para o polvo do Algarve. “É tudo uma questão de nos livrarmos dos constrangimentos da pandemia para que o processo avance”, garante Rita Sá, da ANP.

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O percebe das Berlengas é, actualmente, a única espécie em Portugal em co-gestão - processo que visa garantir que as quantidades retiradas do mar não afectam a regeneração da espécie. diogo ventura

O que fazer?

Apesar dos cenários dramáticos, há cientistas, decisores políticos e instituições que se dedicam a pensar e a propor modelos destinados a mudar a forma como exploramos os recursos marinhos. Em Portugal, a Fundação Calouste Gulbenkian, através do programa LEAP – Policy Development Initiative, promove, com parceiros internacionais, um programa de capacitação de cientistas, colaboradores de ONG e técnicos da administração pública para elaboração de boas políticas públicas no âmbito da produção e do consumo sustentável. O projecto dura 10 meses e, no final, cada participante terá de apresentar propostas em concreto.

Ana Matias é bióloga de formação e técnica da Sciaena. Também bióloga, Inês Trigo é quadro da Direcção-Geral de Política do Mar (Ministério do Mar). Ambas, com trabalhos que não comprometem as instituições onde trabalham, debruçaram-se, grosso modo, sobre as estratégias que deverão ser adoptadas para mudar o comportamento dos portugueses no que diz respeito ao consumo de peixe.

Ana Matias entende ser fundamental que as campanhas desenvolvidas para o consumo racional de peixe – e financiadas por fundos públicos – “enfatizem a mensagem da sustentabilidade ambiental e não, como se fazia no passado, apenas a mensagem estritamente nutricional”. É diferente. Razão pela qual a estratégia de comunicação deve ser promovida pelo Ministério do Mar e pelo Ministério do Ambiente e Acção Climática. Qual seria a ideia-chave de tal estratégia? “Consumir peixe local, sustentável e diverso.” De resto, questões como a fiscalidade repressiva ou as experiências sem sucesso da mudança hábitos em ambiente escolar foram também analisadas no seu trabalho.

Mais céptica quanto à eficácia de campanhas públicas – “demoram tempo a dar resultados e não nos esqueçamos que se come muito peixe desde sempre” –, Inês Trigo acredita que “a sustentabilidade do consumo de pescado tem de fazer parte da discussão sobre a promoção de uma dieta sustentável”. Por outro lado, “quando estamos perante um problema que é global, a solução passa por um compromisso de estados, de organizações internacionais, de associações de pescadores e de cidadãos a vários níveis, sendo que a abordagem estratégica deve actuar ao nível da oferta e, em simultâneo, ao nível da procura. Isto é, estancar a perda de biodiversidade marinha só se consegue se decisores políticos, produtores e consumidores mudarem de atitude.”

“Pela história e pelo papel relevante que tem ao nível da governação sustentável do oceano”, Portugal, defende Inês Trigo, “pode tomar a iniciativa de colocar esta questão na agenda internacional”.


Artigo alterado às 15h51 de 25 de Março de 2021, para corrigir a citação de Inês Trigo no último parágrafo.