Dar o valor possível ao estado das nossas vidas

Toda a gente sabe que os problemas nascem quando decidimos dizer não à inacção.

A vida tem-me ensinado que as melhores coisas são as inúteis. Aquilo que não serve para nada é o que dá verdadeiro prazer. Trabalhar, que é tão útil, é (às vezes, claro) um aborrecimento, e é de desconfiar sempre de alguém que não se deixe azucrinar pela dureza da lavoura. Mas as coisas que não possuem qualquer utilidade, essas sim, são as que merecem atenção, reflexão e, claro está, regozijo. O sexo não serve para nada, a arte não serve para nada, ver futebol não serve para nada, a poesia não serve para nada, grandes conversas com amigos não servem para nada, beber um copo de tinto no vazio da noite não serve para nada. Minto: servem para uma coisa apenas – fazer-nos sentir ligeiramente melhor.

A minha terapeuta, deus nosso senhor a louve, costuma dizer que eu penso demasiado nos rumos alternativos que a minha vida poderia ter tomado, caso eu não tivesse optado por este ou aquele caminho. Como estou determinado em desmentir-lhe a tese, comecei a pensar nas vidas dos outros – e, inevitavelmente, no rumo alternativo que poderiam ter tomado se a pandemia não tivesse tomado conta dos nossos dias, dos nossos hábitos, dos nossos problemas que, afinal, não eram problemas coisa nenhuma. No meio do caos e da empatia solidária para com todos aqueles que têm sofrido atrozmente com tudo isto, apraz-me sacar do bolso aquele pedaço de sabedoria popular e propor que há que apreciar o que ainda sobra. E que, às tantas, uma vida sem pandemia também não teria tido aroma a rosas.

Perdoem-me a tentação que me lança à grande falácia do pensamento mágico, mas quem sabe se este cenário não terá sido, para alguns (poucos, provavelmente), e à falta de melhor formulação, uma minúscula salvação. Porque houve quem tivesse encontrado a felicidade por causa da pandemia. Tenho, pelo menos, três amigos que encontraram o amor por terem sido forçados a ficar trancados em casa. Aliás, um deles ficou noivo três meses depois do primeiro confinamento e casou há meia dúzia de dias numa cerimónia restritíssima. Claro que muitos dirão que o casamento não é sinónimo de felicidade, mas não me apetece entrar em polémicas. Também houve quem encontrasse emprego (ou acréscimo de trabalho) por força das circunstâncias. E também houve quem achasse no súbito travão e na quarentena um caminho para avaliar as suas vidas e operar mudanças retemperadoras.

Mas, de um modo geral, todos nós, de uma forma ou outra, observámos pequeníssimas salvações nestes tempos, sem o sabermos. O que seria de poucos de nós neste dia vinte e dois de março de dois mil e vinte e um se o último ano não nos tivesse castrado os movimentos? Decerto, teríamos tido as mesmas discussões no trânsito, teríamos continuado a dizer mal do senhor Aníbal do contencioso enquanto tomávamos café com os vizinhos de gabinete, teríamos perdido horas e horas das nossas vidas em filas e, às tantas, podíamos até ter partido o tornozelo a um amigo de infância na futebolada de quinta à noite. As chatices que se evitaram, senhores.

Isto para não falar das tragédias. Toda a gente sabe que os problemas nascem quando decidimos dizer não à inacção. Quantos acidentes de automóvel foram evitados? Quantos aviões ficaram por cair? Quantas desgraças evitámos por termos obrigado milhares de milhões a ficar dentro de casa? Mas, nesta disciplina de imaginar que a vida alternativa podia ter sido pior, não nos podemos deixar cair na tentação de calcular que, por esta hora, estaríamos a ter uma sessão xamânica de ayahuasca numa floresta do Peru ou a fazer base jump num penhasco na Nova Zelândia. Não vale pensar que, se não houvesse uma pandemia, coisas melhores teriam surgido nas nossas vidas, porque retira todo o valor a esta minha proposta tosca. Uma proposta que me tem oferecido um minúsculo quentinho no peito, um optimismo inútil que nasce da experiência de estar há semanas trancado em casa, que me ajuda a não deprimir ainda mais com os eventos duros com que nos temos deparado.

O que não sabemos que não sabemos é sempre um vazio no qual poderemos divagar, ocupando o demasiado tempo que temos tido entre mãos, e talvez encontrar nele um consolo rasteiro, no meio do caos e das angústias que toda esta loucura nos tem lançado à cabeça, qual bigorna desgovernada. E, se pensarmos assim, talvez possamos dar o valor possível ao estado das nossas vidas e, mais importante ainda, encontrar energia para entregar uma palavra amiga aos que as têm visto ficar destroçadas.

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