MP arquiva queixa de Mamadou Ba contra perseguição do PNR: “Não se opôs à filmagem”

Em 2019 dois elementos do PNR filmaram Mamadou Ba a caminho de um evento. Um deles disse ter sido empurrado por Mamadou Ba e o MP escreveu: “É natural que a filmagem da situação tivesse também subjacente um cunho de auto-defesa”. Activista nega empurrão e diz que não foi ouvido sobre isso. Diz que decisão mostra que “sistema está disposto a acomodar a violência racista”, comenta.

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O PNR usou a imagem do activista para fazer protestos em várias ocasisões Nuno Ferreira Santos

Dia 25 de Janeiro de 2019, Lisboa, manhã. O activista Mamadou Ba dirige-se a um encontro no Fórum Picoas, em Lisboa. Atrás dele vão dois elementos do partido de extrema-direita PNR, que o perseguem no passeio com um telemóvel apontado e a filmá-lo. “Viemos confrontar-te porque ninguém o faz, somos nós que pagamos o teu salário tu não podes vir falar mal de Portugal”, dizem Carlos Teles e João Patrocínio, então candidato às eleições europeias. Carlos Teles acrescenta: “como estrangeiro deves respeitar”. 

Dias antes, indignado com a actuação policial no bairro da Jamaica, o activista e na altura assessor do Bloco de Esquerda escreveu um post no Facebook que lhe valeu uma enorme polémica: “Sobre a violência policial, que um gajo tenha de aguentar a bosta da bófia e da facho esfera é uma coisa”. 

Perante a insistência de Carlos Teles e de João Patrocínio, que se aproximam em tom de ameaça, dizendo-lhe ainda “pago-te 200 mil euros para tu manteres uma associação de ódio racial”, Mamadou Ba responde: “Sabes o que isso se chama? É bullying”. Vai dialogando com eles, sem perder a calma. O vídeo é partilhado nas redes sociais.

Mamadou Ba apresenta queixa e o Ministério Público investiga. Dois anos depois chega a decisão: o processo foi arquivado porque Mamadou Ba “não se opôs à filmagem”. Para o procurador do MP, que ouviu Mamadou Ba, os dois arguidos e cinco testemunhas sobre esta e outra queixa, tratou-se de um “acordo presumido”, ou seja, quando alguém “sabe que as suas palavras estão a ser gravadas e não se opõe à gravação, o mesmo valendo para a fotografia ou filmagem”. 

O MP considera que Mamadou Ba “tendo plena percepção de que estava a ser filmado em momento algum se opôs”, por isso foi “razoável” os dois elementos do PNR presumirem o seu consentimento “como aliás referiram”, diz o MP. “O que leva a crer que em face da inércia do queixoso assumiram que o mesmo estaria de acordo com tal facto e nessa medida actuando sem dolo”, acrescenta. 

Carlos Teles — quem filmou — declarou ao MP que Mamadou Ba o empurrou “num acto de provocação para desencadear reacção”. E o MP valorizou estas declarações, uma vez que escreveu: “Repare-se que das declarações de Carlos Teles resulta que no momento em que estava a filmar a situação foi empurrado por [Mamadou Ba] num acto de provocação para desencadear uma reacção, pelo que é natural que a filmagem da situação tivesse também subjacente um cunho de auto-defesa, não só contra uma eventual reacção agressiva do ofendido como para servir de prova do que ali se tinha passado, para além das razões invocadas pelos denunciados”, lê-se no despacho.  

Ao PÚBLICO, Mamadou Ba afirma que nunca empurrou Carlos Teles, que só foi ouvido uma vez e não foi questionado pelo MP sobre isso. “Não tive um único contacto com Carlos Teles. Nunca houve empurrões como se verifica no vídeo. O MP não me confrontou com as declarações.” 

De facto, não há no despacho de arquivamento qualquer passagem que se refira ao apuramento do contraditório do que é dito por Carlos Teles. Pelo contrário, há duas testemunhas — os académicos Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Menezes — que afirmam ter visto dois indivíduos a importunarem Mamadou Ba. Numa das passagens do vídeo Carlos Teles insinua que Mamadou Ba está a tentar agredir, mas em nenhum momento se vê o activista aproximar-se de nenhum deles.

O MP decidiu arquivar o inquérito “tendo em conta a inércia do queixoso face à filmagem que estava a ser feita” e que “se trata de um caso de consentimento presumido”, por isso conclui que os militantes do PNR actuaram “ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude e sem dolo face a essa mesma inércia que criou a convicção de permissão de conduta”. Evoca também que “não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade” ou o cargo que desempenha, algo que considera ser o caso de Mamadou Ba, que tem “notoriedade e [é] reconhecido publicamente, nomeadamente pelo cargo”. Justifica ainda que a situação decorreu num local público e “a propósito de factos com interesse público, na altura na ordem do dia, caso em que não é necessário consentimento”. 

Ameaças de morte arquivadas

Na mesma queixa Mamadou Ba incluiu um outro episódio, ocorrido no dia seguinte, na zona do Barreiro, em que quatro indivíduos o abordaram: “Chulo volta para a tua terra, vives à custa dos nossos impostos, quem cospe no prato não merece respeito”, disseram-lhe. E incluiu ainda ameaças de morte que recebeu no Facebook de desconhecidos. Os três episódios, segundo o MP, são susceptíveis de integrar os crimes de ameaça e injuria agravadas e de gravação ilícita.

Sobre as ameaças de morte no Facebook, não tendo sido enviado o URL (porque eram prints com imagens de mensagens), e sabendo que os operadores só guardam os dados durante 90 dias, o pedido destes é “inviável”, justifica o MP. Sobre a acusação de indivíduos que lhe chamaram “chulo” no Barreiro, o MP diz que Mamadou Ba “nada disse” que os pudesse identificar e nenhuma das testemunhas inquiridas assistiu ao episódio. 

O activista diz que não vai recorrer da decisão: “Tenho falta de confiança no sistema. Tendo em conta os argumentos usados pelo MP não restam alternativas. Significa que o sistema está disposto a acomodar a violência racista. O Estado mostra estar impreparado para lidar com a questão racial, nomeadamente com o discurso de ódio. Pede para eu fornecer dados, mas não me compete fazer o trabalho do MP e da PJ. Tenho falta de confiança na máquina do Estado em obter esses elementos e na sua falta de compromisso. A violência racial não tem o mesmo valor ético e moral do que as outras violências na cabeça do legislador e dos instrumentos que tem para a combater.” 

E conclui: “A decisão legítima a ideia de que uma figura pública racializada pode sofrer retaliação sob forma de insultos e perseguição política”.

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