Primeiro doente com covid no país foi acolhido há um ano num misto de “receio” e “sentido de missão”

Coube a uma equipa médica do Hospital de Santo António, no Porto, receber o paciente zero da covid-19 em Portugal. De lá para cá, muita coisa mudou.

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Faixa de agradecimentos aso médicos no Hospital de Santo António a 20 de Março de 2020 Nelson Garrido

O paciente zero da covid-19 em Portugal foi internado no Santo António, no Porto, há um ano, altura em que a equipa, entretanto condecorada pelo Presidente da República, manifestava “expectativa e receio” a par de “enorme sentido de missão”.

“Internámo-lo porque a ideia [na primeira vaga da pandemia do novo coronavírus] era: tem covid-19 é para internar, fosse com poucos sintomas ou não. Tínhamos de vigiar o que ia acontecer. Esteve 10 ou 11 dias connosco, mas na prática foi um doente que hoje não seria internado e podia ser vigiado em casa”, descreve Rui Sarmento, director do serviço de infecciologia do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP).

À Lusa, nas vésperas de completar um ano desde essa primeira admissão, o especialista que lidera a equipa responsável pela gestão dos internamentos covid-19 neste centro hospitalar que inclui o Hospital de Santo António descreve passo a passo o momento no qual coube à médica Ana Cipriano, na altura interna de quinto ano e agora especialista, e ao enfermeiro Domingos Dieguez, que há 40 anos trabalha neste hospital, assumir a condução do caso e tomar decisões que se exigiam “rápidas e precisas, apesar do menor conhecimento sobre o vírus que se tinha então”.

O doente, já referenciado como caso suspeito pelos sintomas descritos telefonicamente e porque tinha estado em Itália e esse era um critério de alerta de positividade, deu entrada no Serviço de Urgência do hospital cerca das 11h da manhã de um domingo, 1 de Março.

Às 13h foi internado num dos seis quartos de pressão negativa do serviço de infecciologia que estava totalmente alocado à covid-19, inicialmente com 34 camas. O teste de confirmação positivo chegou às 5h do dia 2.

Ana Cipriano, a médica que estava de urgência nesse dia, contou com o apoio de uma “vasta equipa com enorme sentido de missão”, como a própria descreve à Lusa, entre os quais a enfermeira Vera Ramos que fez o teste, e do especialista em patologia clínica, Hugo Cruz.

As zaragatoas desse primeiro teste covid-19 realizado no Santo António seguiram para contra-análise para o Hospital de São João, também no Porto, por este centro hospitalar “ter nessa altura mais experiência em testes”, bem como para o Instituto Nacional De Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), em Lisboa.

“Admito que existisse maior expectativa e receio, mas em termos práticos dos passos a seguir mantém-se até hoje. Vestir o EPI [equipamento de protecção individual] e fazer todos os procedimentos foi igual. Tínhamos formação, a chegada do novo coronavírus foi planeada e antecipada, mas sim, conhecíamos menos a doença”, descreveu Ana Cipriano.

Palavras como “receio” e “missão” repetem-se no relato de Domingos Dieguez, que teve contacto directo com o doente logo nos primeiros minutos, ainda que equipado com touca, óculos, máscara, bata, tapa sapatos e quatro pares de luvas.

Coube-lhe inclusivamente levar a alimentação ao paciente de 60 anos que apresentava febre ligeira, dores musculares e nas articulações e é médico em Penafiel porque “ninguém se queria aproximar perante uma coisa nova que gerava medo”. Também combinou via telefone os circuitos caso o doente necessitasse ir à casa de banho ou tomar um copo com água.

“O pessoal médico e de enfermagem tinham já conhecimento e formação – devido a patologias e ameaças anteriores como a gripe das aves, o sarampo, o ébola –, o restante pessoal manifestava algum receio. Com a devida protecção, coube-me esse contacto e também falar e acomodar o doente porque qualquer paciente que fique num gabinete por umas horas, tem sempre a necessidade de uma palavra, um cumprimento, e este não era excepção e necessitava”, acrescenta.

"Parece que tudo mudou"

Domingos Dieguez é, a par de Ana Mendes, técnica superior de diagnóstico e terapêutica, Maria Conceição Pinto, assistente operacional, e Miguel Abreu, médico infecciologista, um dos quatro profissionais de saúde que a 10 de Outubro do ano passado foram agraciados com a Ordem do Mérito pelas mãos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Quatro meses depois, e também após a vaga de covid-19 até aqui mais penalizadora no país, na qual se sucederam recordes de mortes e de casos diários, Ana Cipriano, que é algarvia e diminuiu as idas a casa para proteger a família, frisa a convicção de que o “conhecimento actual é muito diferente”, sintetizando: “Houve uma evolução extraordinária.”

O mesmo acredita o director de infecciologia, que aponta que com o primeiro doente se aprendeu “alguma coisa” sobretudo para lidar com os casos imediatamente posteriores, como o de “um industrial que tinha ido a uma feira de calçado a Milão e infectou vários funcionários e familiares e o caso de uma mãe de cerca de 80 anos que tinha estado em férias em Itália e infectado a filha de cerca de 50 com a qual partilhou um quarto de pressão negativa” no hospital.

“E a filha passou bem mal e a mãe, que foi quem sofreu a infecção original, nem tanto. É a resistência de cada organismo que determina o que vai acontecer”, conta Rui Sarmento.

O infecciologista refere que além dos critérios de internamento se terem alterado, também o tratamento se modificou, dando como exemplo o facto de 53% dos doentes da chamada primeira vaga terem sido medicados com hidroxicloroquina, um medicamento que deixou de ser validado pela Organização Mundial da Saúde uns meses depois.

“Fomos apreendendo naquele mês [Março de 2020] e a 23 tínhamos a enfermaria de infecciosas completa. Expandimos para medicina e neurocirurgia. As enfermarias novas encheram em dias. Eram tantos os doentes que tivemos de aperfeiçoar os critérios de internamento e também começaram a aparecer normas nesse sentido da Direcção-Geral da Saúde. Parece que tudo mudou, mas passou só um ano”, concluiu Rui Sarmento.

A pandemia de covid-19 provocou, pelo menos, 2.508.786 mortos no mundo, resultantes de mais de 112,9 milhões de casos de infecção, enquanto em Portugal morreram 16.243 pessoas dos 802.773 casos de infecção confirmados.

A doença é transmitida por um novo coronavírus detectado no final de Dezembro de 2019, em Wuhan, uma cidade do centro da China.

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