Governo não avança datas para desconfinamento. Não é altura para “falar de tempos ou de modos”

Ainda não há consensos dos peritos que aconselham o Governo sobre os critérios para desconfinar, como tinha pedido António Costa. Mas já há especialistas a pedir “um plano de desconfinamento”, que deve ser “comunicado rapidamente”

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LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO

Com todos os olhos postos num calendário do desconfinamento, numa altura em que a situação epidemiológica está a evoluir de forma expressiva, a palavra de ordem do Governo continua a ser cautela. Todos convergem na ideia de que as escolas dos mais pequenos devem ser as primeiras a reabrir, a ministra da Saúde repete que concorda mas recusa-se a avançar datas para o primeiro passo do desconfinamento. Esta segunda-feira, no final da reunião do Infarmed, Marta Temido esquivou-se a responder à pergunta que todos fazem, defendendo que ainda não é a altura para “falar de tempos ou de modos” de levantar as restrições. Mas assumiu que, como se decidiu que as escolas seriam as últimas a fechar, “é coerente” pensar que serão as primeiras a abrir, como tinham já adiantado o ministro da Educação e a ministra de Estado e da Presidência.

Dos dados apresentados neste que é já o 16º encontro em que especialistas e políticos analisam e debatem a evolução da situação epidemiológica da covid-19, uma semana antes da renovação do estado de emergência, a mensagem que sai reforçada é a de que, apesar de os números estarem a descer de forma muito expressiva, de o Rt (índice de transmissibilidade) ter chegado aos valores mais baixos de sempre, ainda há todo um percurso a fazer para se avançar para o desconfinamento, sobretudo por causa da pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde e do peso das novas variantes.

Vamos por partes. A incidência está a cair de uma forma “muito significativa”, no sábado era já de 322 casos por 100 mil habitantes a 14 dias, e havia mesmo “vastas áreas do território” com menos de 240, sublinhou André Peralta Santos, da Direcção-Geral da Saúde DGS). No período entre 13 e 17 deste mês, o Rt  tinha descido até 0,67, “o valor mais baixo desde o início da epidemia”, o “mais baixo da Europa” nas últimas duas semanas, e Portugal continuava a ser o país com a maior redução de mobilidade, especificou Baltazar Nunes, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa).

As hospitalizações têm igualmente descido de forma gradual e sustentada, ainda que a um ritmo mais lento. O principal problema é o total de doentes em estado crítico internados em unidades de cuidados intensivos (UCI), que permanece acima das seis centenas, um número ainda “muito elevado”, frisou Baltazar Nunes. As projecções do Insa apontam para uma taxa de ocupação das UCI abaixo das 320 camas apenas em meados de Março e só no final desse mês deverá chegar às 200, a meta traçada por Marcelo Rebelo de Sousa há duas semanas.

A capacidade instalada neste momento é enganadora”, avisou João Gouveia,  que lidera a coordenação da resposta em medicina intensiva em Portugal e traça um objectivo preciso: é preciso chegar a menos de 242 doentes em UCI (85% de ocupação) para se ter alguma margem e para que seja possível manter a actividade “não covid”, com 629 camas. No total, estas 914 camas serão “o novo normal” em medicina intensiva, preconizou, lembrando que as projecções indicam que isso apenas será possível na terceira semana de Março. Ontem, dia em que foi registado o valor de incidência mais baixo desde 6 de Outubro – 549 casos confirmados –, havia ainda 3322 internados, 627 dos quais em UCI.

Plano de desconfinamento "deve ser comunicado rapidamente"

Há duas semanas, o primeiro-ministro pediu “consensos” aos especialistas que aconselham o Governo. Esta segunda-feira, foi apresentada a primeira fase de um trabalho conjunto do grupo de peritos das reuniões do Infarmed - além da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o Insa, a DGS. Os especialistas recolheram os indicadores e critérios que quatro países utilizam para tomar decisões e controlar a pandemia, percebeu-se que os valores de referência da incidência usados por Portugal para definir os diferentes níveis de risco “são muito superiores a outros países”, explicou Carla Nunes, directora da ENSP.  Mas só nas duas fases posteriores vai ser possível propor e discutir “matrizes de risco”, especificou. Portanto, ainda não haverá consensos. 

“Este desconfinamento vai ser muito difícil”, observa o professor de epidemiologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Manuel Carmo Gomes, que foi muito crítico na anterior reunião do Infarmed e que deixou de integrar o painel de peritos. Vai ser difícil “por causa das novas variantes a circular, porque os hospitais continuam sobre grande pressão, porque a testagem ainda não dá garantias”, enumera.

“Há linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas”, repete Carmo Gomes, lembrando que a equipa da Faculdade de Ciências já apresentou critérios para um desconfinamento, com metodologia para os combinar entre si, e cinco níveis de risco.” Estamos no nível três e, enquanto estivermos acima do 2 não devemos desconfinar”, recomenda. É preciso reduzir a incidência, a taxa de positividade dos testes de rastreio, a ocupação das UCI, exemplifica.

Mas Carmo Gomes defende que não será necessário que todos os indicadores “estejam no verde” para avançar para um desconfinamento gradual. “Não precisamos de esperar até ao fim de Março”, é possível começar pelas escolas [dos mais pequenos] e ficar 15 dias a ver o que acontece”, propõe, sublinhando que a receita passa por “reunir consensos" e, depois, “ter coragem” para decidir.

“O Governo está numa situação particularmente delicada”, corrobora Bernardo Gomes, médico de saúde pública e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “A comunicação de risco não correu bem em Maio e também não correu bem em Dezembro. Com o susto de Janeiro, houve uma aprendizagem colectiva”, recorda. Agora, face a estes números “francamente positivos”, é “ inevitável que toda a gente esteja a pensar num calendário”.  Por isso, “precisamos de ter um plano de desconfinamento que deve ser comunicado rapidamente”, diz o especialista, que também nota que “parece consensual” avançar pela abertura das escolas dos mais pequenos. 

Os três pilares para desconfinar passam, receita o especialista em saúde pública, pela comunicação, porque “comunicar um desconfinamento não é fácil”, pela testagem, que “mudou em termos teóricos mas falta operacionalizar essa mudança no terreno”, e pela capacidade de rastreio, que “tem que ser reforçada”. “Uma forma de trabalhar que não seja muito ágil e assertiva não resulta”, remata.

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