Esforços egoístas não repõem a normalidade

As dificuldades na vacinação da população mundial até podem tornar a normalidade mundial num cenário idílico. Mas a verdade é que já existem os instrumentos para o concretizar. Ou seja, o problema já não é a existência da vacina. É a velocidade com que ela chega às pessoas.

O combate à pandemia tem um pressuposto essencial: o esforço coletivo. É possível avaliar o combate à pandemia em três dimensões geográficas: Portugal, Europa e o Mundo. E nestas três dimensões geográficas é possível verificar três planos críticos para o regresso à normalidade: a vacinação, a reposição da mobilidade e a recuperação económica e financeira.

A vacinação

Mesmo lateralizando os problemas na execução do plano de vacinação, percebe-se que Portugal estará sempre condicionado aos mesmos problemas que o resto dos Estados membros da União Europeia (UE). A compra das vacinas é um processo europeu e, apesar de todos os problemas que têm ocorrido, este processo permite a equidade da distribuição das vacinas pelos Estados membros. Evitam-se, na geografia dos 27, injustiças que poderiam ser provocadas pelo maior poder de compra de alguns países, o que lhes permitiria ter acesso a uma quantidade maior de vacinas com maior celeridade.

Ainda assim, no plano mundial, existem discrepâncias que atrasam o ritmo mundial da vacinação. Por exemplo, a África do Sul compra a vacina Oxford-AstraZeneca por um preço 2,5 vezes superior à maioria dos países europeus [1]. Mas até o processo de compra de 270 milhões de vacinas realizado pela União Africana, através do Afreximbank, com evidentes descontos aplicados ao preço, pode não ser suficiente para impedir que alguns países africanos tenham de se endividar para ter de proteger a sua população pela via da vacinação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem em curso o programa COVAX, que envolve 145 países. De entre estes países, a OMS espera conseguir vacinar 20% da população dos 92 países com rendimento baixo (com PIB per capita igual ou inferior a 1045 dólares). Mas mesmo cumprindo as metas do programa COVAX, ainda existe uma grande distância para conseguir vacinar 70% da população mundial. Essa é a percentagem necessária, normalmente apontada para obter a imunidade global contra a covid-19 [2].

A reposição da mobilidade

O ponto crítico para o mundo regressar à normalidade é realizar com sucesso um plano de vacinação global.

Contudo, a diferença do ritmo da vacinação dos países mais ricos para os mais pobres significará que a reposição da mobilidade será igualmente feita a ritmos diferentes. O que implicará que os efeitos económicos inerentes às restrições da mobilidade perdurarão mais tempo nos países mais pobres.

A própria ideia de facultar mobilidade, através do “passaporte imunidade”, a quem tiver recebido a vacina, pode determinar desigualdades para cidadãos do mesmo país ou espaço com livre circulação de pessoas e bens. Mas pior será restringir a mobilidade aos cidadãos dos países com menor capacidade de vacinar a população. Significará retirar ou dar liberdade às pessoas em função da riqueza do seu país.

Como se este cenário, por si só, já não fosse suficientemente atroz, a verdade é que sem vacinar 70% da população mundial não existirá normalidade, nem nos países ricos, nem nos países pobres. O mundo está verdadeiramente globalizado e os efeitos deste surto epidemiológico serão sempre globalmente sistémicos, ainda que a intensidade possa variar em função da região do globo.

É simples perceber estes efeitos olhando apenas para o caso de Portugal. Com comunidades portuguesas num número apreciável em vários dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), o ritmo de vacinação afetará a mobilidade dos portugueses nestes países. Acrescido do facto de estes países serem importantes parceiros económicos.

Por esse motivo, no trajeto que percorremos para regressar à normalidade não nos pode ser indiferente o que se passa nos PALOP, no Brasil, África do Sul, França e vários outros países cuja relação com Portugal nos tornam particularmente expostos. Simultaneamente, esta realidade faz com que o combate à covid-19 fora do território nacional e da Europa seja algo que não poderá deixar Portugal indiferente.

Recuperação económica e financeira

As dificuldades na vacinação da população mundial até podem tornar a normalidade mundial num cenário idílico. Mas a verdade é que já existem os instrumentos para o concretizar. Ou seja, o problema já não é a existência da vacina. É a velocidade com que ela chega às pessoas.

Contudo, os instrumentos financeiros necessários para reerguer a normalidade mundial estão longe de existir. Portugal continua enquadrado num contexto europeu que estabelece limites de endividamento e retiram espaço para adequar Orçamento do Estado à resposta que o país precisa. Se as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) forem repostas em 2022, os limites do défice público e endividamento podem estrangular a economia. Por isso é tão importante garantir que a cláusula de derrogação do PEC se mantém em vigor em 2021 e que um eventual regresso será gradual e acompanhado da adaptação das regras para uma realidade económica nova, fortemente marcada pelas consequências da pandemia, a médio e longo prazo. Não queremos recuperar a economia para ficarmos iguais a 2019, mas para nos adaptarmos para os desafios das próximas décadas. Se a economia tem de se adaptar, as políticas orçamentais também terão de o fazer.

Por isso, a dimensão da resposta ao financiamento dos países europeus e das suas economias, desde o surgimento da pandemia, tem obrigado a suspender ou flexibilizar as regras. O próprio financiamento a empresas requer a aprovação da “poderosa” regulação europeia. Ou seja, financiar empresas é uma exceção à regra.

Mas mesmo que a UE adeque a sua estrutura de financiamento à necessidade dos Estados membros, isso não resolverá o problema mundial do fosso crescente entre os países mais ricos e os mais pobres.

A dívida soberana dos países mais pobres tem escalado. A DSSI (Debt Service Suspension Initiative), que suspende o serviço da dívida para 73 países, é uma iniciativa que envolve o Banco Mundial, FMI e G20, mas que que peca por ser curta. Mesmo com a prorrogação concedida até março de 2021 são autênticas “gotas no oceano”. A dívida destes 73 países ascendeu a 744 mil milhões de dólares em 2020.

Os números estão no relatório do Banco Mundial “International Debt Statitics”, de 2021, onde o presidente David Malpass explica, logo na nota introdutória, que o atual montante da dívida destes países representa um aumento de cerca de 9% face a 2019.

É preciso lembrar que estes países não têm como “imprimir dinheiro” para resolver os seus problemas. Essa é uma vantagem que reside nos países com moedas fortes, como o dólar norte-americano. No caso do Euro, por exemplo, essa decisão passa pelo Banco Central Europeu, que tem um mandato claro para o controlo da inflação e para a estabilidade dos preços, mas que tem adotado políticas monetárias não convencionais que, na verdade, têm sido o pilar do acesso de países – como Portugal – aos mercados da dívida soberana.

Ou seja, com este aumento da dívida e o aprofundamento da crise económica estes países estão longe de conseguir pagar aos seus credores, provocando uma crise na dívida soberana.

O esforço que o mundo faz no combate à covid-19 não pode ser egoísta. Se o for estaremos longe da normalidade.

Nelson Mandela, o “pai da nação do arco íris”, disse: “Estou confiante de que nenhum dos presentes aqui hoje me acusará de egoísmo se eu pedir para passar mais tempo, enquanto estou de boa saúde, com a minha família, os meus amigos e também comigo próprio.” Após uma vida plena de atos altruístas dedicados à causa pública, ninguém o poderia acusar de egoísmo.

Mas se a consequência do combate à pandemia resultar nas regiões mais ricas do globo poderem passar mais tempo com as suas famílias e amigos desprovidos de qualquer pensamento altruísta sobre que se passa nos países mais pobres, esse não será um ato de egoísmo?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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