Façam pouco barulho que o Presidente está a dormir

O Presidente da República está preocupado com o crónico barulho do vizinho de cima. A falta de visão estratégica não tem limite.

Tão bizarro quanto insólito, o novo decreto presidencial de emergência acha que é normal impedir as pessoas de pregar pregos às paredes ou de usar uma varinha mágica para triturar sopa, apenas porque estamos em estado de emergência. Segundo esta visão, o estado de emergência até já serve para entrar pela casa adentro, de cada um de nós, e para impor simples regras de boa educação e civilidade (que todos já deveríamos seguir, sempre).

Assim se comprova a impropriedade, a inadmissibilidade e a natureza excessiva da sucessiva decretação de estados de emergência. Recorde-se que a taxa de letalidade da covid-19 está estimada em apenas 0,6% pela Organização Mundial da Saúde e que, em Portugal, se estima que a mesma seja de 0,19(4)%, quando corrigido o número do total de infetados do número de casos não diagnosticados, que vários estudos científicos estimam em dez vezes mais. Ora, de acordo com o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, a taxa de letalidade da gripe (“influenza), nos Estados Unidos da América, foi de 0,11% durante o período de 2019/2020.

Se apelamos à ciência, convém recordar que o método científico pressupõe uma análise objetiva e assente na análise rigorosa de dados estatísticos. Que, só agora, começam a poder ser analisados.

O Presidente da República está preocupado com o crónico barulho do vizinho de cima.

Enquanto isso, a indústria farmacêutica, principescamente financiada pela própria União Europeia e por vários Estados estrangeiros (como já demonstrei, noutra oportunidade), persiste em colocar os lucros à frente do interesse público mundial. Incumpre contratos a que se vinculou. Protela a entrega de vacinas essenciais ao salvamento de inúmeras vidas. Recusa-se a permitir que laboratórios públicos e outras empresas farmacêuticas produzam, em massa, as tão rarefeitas (e desejadas) vacinas. Tudo isto, fazendo uso de um (desfasado) direito às patentes que só puderam registar porque houve uma incansável investigação de centros de investigação científica universitários e um financiamento esmagadoramente público.

Em 14 de novembro de 2001, através da Declaração de Doha, a Organização Mundial do Comércio (OMC) – após iniciativa e persistente esforço diplomático dos países emergentes e em vias de desenvolvimento (liderados por África do Sul e Índia), permitiu-se, precisamente, o levantamento das patentes de que beneficiavam vários medicamentos essenciais, assim maximizando o seu acesso pelas populações mais desfavorecidas; em especial, aos antirretrovíricos, decisivos no combate ao vírus VIH/sida. Com esta ação, permitiu-se que vários medicamentos essenciais pudessem ser universalmente distribuídos. Consequência: hoje, a taxa de mortalidade do vírus VIH/sida é irrisória e aqueles que por ela são infetados usufruem de uma vida longa e saudável.

Entretanto, revigorados por este antecedente, vários países (mais uma vez, África do Sul e Índia) e inúmeros movimentos globais de cidadãos (em especial, o Movimento dos Médicos Sem Fronteiras) têm vindo a reclamar pelo levantamento das patentes de vacinas e outros tratamentos medicamentosos contra a covid-19. Recentemente, porém, a Organização Mundial da Saúde adiou uma tomada de decisão sobre a matéria.

E o que é que fez o decreto presidencial de emergência quanto a isso? Nada.

Não determinou qualquer comando normativo de suspensão temporária dos direitos de patentes (isto é, de propriedade privada), com vista a garantir que outras empresas farmacêuticas – em especial, a indústria dos medicamentos genéricos – iniciem, de imediato, a produção em massa de vacinas.

Não estipulou, sequer, que a diplomacia portuguesa iniciasse um esforço de negociação junto da OMS e da OMC, com vista à adoção de uma declaração especial de derrogação imediata desses direitos de patentes.

Não garantiu que o Governo equipasse e preparasse os laboratórios públicos portugueses – entre os quais, o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos e o Instituto Nacional Ricardo Jorge e respetivos laboratórios de saúde pública, incluindo universitários – para que iniciassem a produção de vacinas e de outros medicamentos de combate à covid-19.

Não procedeu à requisição civil ou sequer determinou a assinatura de protocolos com empresas farmacêuticas nacionais – tais como a Bial, Bluepharma, Hovione e GenIbet, entre outras – para que estas assegurassem a produção nacional de vacinas.

Pior do que isso, ficou a dormir, enquanto as/os portuguesas/es desesperam por vacinas.

Importante é o barulho do vizinho de cima.

A falta de visão estratégica não tem limite. Com efeito, o decreto presidencial de emergência não se preocupa – uma vez que seja – com o futuro pós-covid-19. Isto é, com a situação daqueles que, nos próximos meses, irão sendo vacinados.

Evidentemente, há que criar confiança nas pessoas. Quer porque a falta de saúde mental terá repercussões gigantescas na nossa vida em comunidade, quer porque a recuperação rápida da nossa economia disso depende. Ora, o decreto presidencial é completamente omisso quanto à emissão de certificados e passaportes de imunidade, por parte de quem já foi vacinado. A médio prazo, fará sentido que quem foi vacinado continue a ficar sujeito a confinamento obrigatório? É admissível que os vacinados continuem impedidos de se deslocar para fora do país ou de nos visitar (com custos astronómicos para o nosso turismo), de exercer presencialmente as suas atividades profissionais ou, até, de circular entre concelhos? Sempre a médio prazo, fará sentido que esses continuem obrigados a usar máscaras ou a ser impedidos de realizar encontros e convívios em suas casas? É normal que aqueles que já foram contaminados – e, recorde-se, hoje, já serão 3.920.395 (se aplicarmos um fator multiplicador cauteloso, de apenas cinco vezes o número efetivo de casos diagnosticados; ou seja, 784.079) – também tenham que ser vacinados?

Não faz sentido prometer vacinas e, depois, não associar nenhuma vantagem à sua toma.

Os certificados de imunidade são, assim, uma exigência de bom-senso, mas também da própria Constituição. Recorde-se que não é constitucionalmente aceitável que, há quase um ano, se continue a restringir direitos e liberdades fundamentais, quando essa restrição passa – agora, de modo evidente, após a vacinação – a ser completamente desproporcionada e excessiva.

Enquanto tudo isto se passa, o chefe de Estado descobriu que, afinal, o principal problema do país é o barulho excessivo provocado pelos vizinhos. Ao invés de promover a discórdia e a tensão entre a vizinhança, bom seria que contribuísse para resolver a grave crise – antes de tudo, anímica – em que nos encontramos.

Já sei que, nos dias que correm, não se pode discordar de quem comanda. Mesmo quando quem comanda voga ao sabor do vento e não cumpre a sua função.

Façam pouco barulho.

Porque o Presidente está a dormir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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