O grito para dentro

Tem-se falado pouco disso, das incompreensões geracionais que se intensificaram neste contexto, mas elas estão aí, e com possibilidades de serem exponenciadas no futuro mais próximo.

Tenho a certeza que um dia será feito um estudo rigoroso, de indiscutível credibilidade científica, para justificar porque é que as filas para pagar em supermercados geram tantas situações de conflitualidade. Há semanas, numa mercearia com uma multidão de três pessoas lá dentro — ok, com a senhora da caixa, quatro — foi-me oferecida porrada por um cavalheiro que se encontrava a uma distância física considerável. Agradeci a oferta, mas recusei educadamente. E foi assim que o senhor, de maneira simpática, em vez de me presentear, resolveu dar um generoso pontapé num saco de batatas ao seu lado, descarregando aí toda a sua fúria. Não houve danos físicos, apenas batatais.

Há dias, outra situação com características semelhantes, com duas pessoas pegando-se porque alegadamente uma terá passado à frente da outra. O curioso foi o que se passou a seguir, pela diferença de idades. Uma delas aparentando não ter chegado ainda aos vinte e a outra parecendo já ter ultrapassado os setenta. Começaram por evocar a escatologia, depois mimosearam os entes queridos de cada um e acabaram em insultos geracionais, com a mais idosa a culpar os novos de desrespeito e o primeiro a afirmar que os mais velhos são do piorio, não cumprindo os preceitos do confinamento. Tem-se falado pouco disso, das incompreensões geracionais que se intensificaram neste contexto, mas elas estão aí, e com possibilidades de serem exponenciadas no futuro mais próximo.

Os mais idosos têm sido maltratados, mas os mais novos quando olham para o horizonte, falta-lhes perspectivas e possibilidades de emancipação. A coisa não está fácil. Anda toda a gente muito nervosa. Não é fácil gerir confinamentos intermitentes, restrições sociais, económicas e afectivas. Existe um desgaste emocional, devido à incerteza e falta de controlo que se sente sobre a pandemia e a vida, misto de ansiedade, apatia e frustração. O mínimo pretexto serve para acicatar os ânimos e aprontar culpados para seja lá o que for. Não é apenas entre anónimos. A aparência de paz que existia entre partidos políticos há um ano também se foi. Quase todos criticam agora a gestão da pandemia, mas sem que se perceba exactamente que alternativas têm para oferecer. Sente-se uma desconfiança crescente pelas instituições, ciência, saúde e também pelo vizinho do lado.

Na rua é assim. Olhamos desconfiados uns para os outros. Passar por alguém transformou-se num complexo jogo de sinais difíceis de decifrar. Tanto há aqueles que tentam contornar-nos o mais ao largo possível, elaborando complexos jogos mentais por antecipação, como os impetuosos que respiram fundo dentro da lógica “isto não há-de ser nada” e se aventuram. Em casa é a exasperação. É que não é só permanecer o maior tempo possível encerrado em quatro paredes, é também o sermos forçados a habitar dentro das nossas cabeças. O confinamento físico pressupõe também um confinamento psíquico.

É verdade que temos uma panóplia de dispositivos digitais à mão, mas a duração da quarentena está a afectar tanto a concentração como a distracção. Como não existem tempos diferentes que se complementam e fornecem sentido mútuo a partir da sua condição antagónica, o tempo passa a ser uma presença gigantesca, pesada, informe e difícil de domar. Há fadiga. Muitas das pessoas com quem converso, assumem estar fartas do excesso de informação, das leituras, de assistir a filmes ou de mergulhar consecutivamente em séries de televisão. E este quadro, apesar de tudo, é em círculos privilegiados. Imagine-se o cenário completo.

Vive-se em suspensão. Não se pode regressar ao passado e o futuro não se vislumbra. Talvez seja importante concentrarmo-nos no que depende de nós, confiando nas instituições, sem perder evidentemente o sentido crítico, e permitirmo-nos sentir as perturbações negativas para melhor as superar. É importante falar de como nos sentimos, em vez de exigir e culpar tanto. No primeiro confinamento fizeram-se analogias com as pinturas de Edward Hopper, representando o oceano de solidão da vida moderna, personagens isoladas, ou acompanhadas, mas desconectadas, para ser sublinhado ainda mais o seu isolamento. Agora talvez seja mais indicado O Grito, de Edward Munch. É aí que parecemos estar. Na angústia. Na indeterminação de não saber o que esperar. No tapar os ouvidos, petrificados. Um grito para dentro que, à menor incompreensão, se transforma em irritabilidade e num grito contra alguém.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários