Não saber o dia de amanhã

Naturalmente ao capital não lhe interessa que germinem projectos afectivos, criativos, cuidadores, cooperativos e sociais. Mas é precisamente disso que agora necessitamos.

É quase unânime: o actual confinamento está a custar mais do que anterior, pelo menos para quem pode estar a trabalhar a partir de casa. Para os restantes, aqueles que nunca pararam, não haverá diferenças substanciais. Desde o primeiro momento, há um ano, que se percebeu que a pandemia iria envolver emoções complexas, oscilantes e internamente contraditórias. Sofrimento com esperança, medo e resistência, tédio com vulnerabilidade, euforia com profunda exaustão.

E acima de tudo existe uma sensação recorrente de impotência ou de imponderabilidade, que na verdade se tornaram características do cenário psíquico urbanizado há muito. A pandemia veio tornar isso ainda mais evidente. O não saber o que vai acontecer amanhã, do ponto de vista físico, económico ou mental, é o quotidiano de demasiada gente. Hoje isso intensificou-se a outros níveis, até porque estamos a lidar com o arquétipo de todos os medos — a morte. Mas o sentimento de incerteza está lá alojado há muito.

Nas últimas décadas, a retórica neoliberal quis-nos fazer acreditar que ser flexível, ter ideias fora da caixa, sair da zona de conforto e outras quinquilharias argumentativas eram a solução para todos os problemas. Ter iniciativa e ideias próprias é necessário. Mas isso não pode servir para maquilhar uma realidade em que a precariedade e a desigualdade são a norma, nem para culpabilizar quem não tem acesso aos mínimos (saúde, educação, habitação, cultura...), como se as mudanças pudessem ser apenas decisões voluntárias e internas, independentes de quaisquer condicionalismos externos — ou seja, só pode equacionar sair da zona de conforto quem está nela.

O que a segunda fase de confinamento tem vindo a mostrar é isso. Há pouca gente com acesso a essa zona — que é uma área de protecção material, mas não só. É também um espaço de saúde mental. É aquilo que permite ganhar alguma consciência do que se passa, aceitando algumas inevitáveis contradições, sendo capaz de ser uma voz crítica construtiva noutras, sem ceder ao papel de vítima de algo que nos escapa, porque aí procura-se sempre a criminalização que dá sentido à vitimização. É aquilo que permite atravessar uma tempestade, com inevitáveis oscilações, mas com horizonte. Uma âncora. É o mínimo a que qualquer um devia aspirar para o máximo desenvolvimento da sua subjectividade enquanto indivíduo.

Nos últimos tempos vimos os valores da estabilidade e da tranquilidade serem reduzidos a lugares-comuns, por conveniência de um discurso que exige pessoas sem raízes, sem redes de afectos, pouco questionadoras de si próprias e da realidade à volta, entregues apenas ao que lhes é oferecido: consumo e uma voragem de experiências, sensações e prazeres, um tipo de práticas emocionais que fornecem a ilusão de serem antídotos à depressão, tristeza ou solidão. Claro que ao capital não lhe interessa que germinem projectos afectivos, criativos, cuidadores, cooperativos e sociais. Mas é disso que agora precisamos.

A saúde mental está correlacionada com as virtudes fornecidas por essa tal zona de conforto que foi tão difamada nos últimos tempos. Um espaço de vínculos sociais, de profundidade afectiva, de redes de apoio, de exercício regular, de novas actividades cognitivas, de diminuição das angústias por se ter dinheiro para a renda no final do mês, de boa nutrição e de tempo para reflectir e descansar. É na zona de conforto que hoje todos deveríamos estar. Não suprime as inevitáveis incertezas que a pandemia transporta, mas ajuda certamente a geri-las de uma forma mais saudável.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários