Portugal chumbou na primeira prova da Presidência Portuguesa do Conselho da UE

Após a sua missão a Moçambique como enviado do Alto Representante J. Borrell, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Santos Silva, regressou cheio de auto-elogios sobre o pleno sucesso da sua missão, mas sem quaisquer resultados visíveis. Nenhuma das questões previamente levantadas foi respondida.

No âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE​, Santos Silva viajou para Moçambique como delegado do Alto Representante da UE para a política externa, Josep Borrell, para abordar o conflito na província de Cabo Delgado e as possíveis medidas de apoio da UE para reduzir o sofrimento da população daquela província.

Na bagagem tinha uma série de questões a esclarecer que foram levantadas pela Comissão da UE e pelo Parlamento Europeu já desde Setembro de 2020. Entre elas, a autorização, pelo Governo moçambicano, da realização de uma fact finding mission da UE a Cabo Delgado com a finalidade de ser avaliada a situação no terreno; o esclarecimento de alegações de violações maciças dos direitos humanos pelas forças de segurança moçambicanas e ainda o bloqueio, por parte do Governo moçambicano, do acesso a Cabo Delgado a jornalistas.

Na sua resolução de Setembro passado, o Parlamento Europeu (PE) sublinhou a necessidade de o Governo moçambicano trabalhar para a eliminação de algumas das causas profundas do terrorismo, tais como a insegurança, a pobreza, a violação dos direitos humanos, a desigualdade, a exclusão, o desemprego, a degradação ambiental, a corrupção e a má utilização dos fundos públicos e a impunidade, no sentido de assim contribuir consideravelmente para a erradicação das organizações terroristas.

Sobre todas estas questões, Santos Silva não trouxe nenhum resultado palpável. Mais grave ainda, não fez qualquer referência quanto a ter levantando, ou não, essas questões junto do Governo moçambicano, pelo que nem sequer sabemos se as abordou. Até o serviço de porta-voz da Comissão da UE, directamente contactado, não pôde fornecer qualquer informação concreta sobre os temas acima mencionados.

Em vez disso, Santos Silva apenas declarou estar muito satisfeito com a reunião tida com o Presidente de Moçambique, já que ambos rapidamente descobriram quais são as prioridades das autoridades moçambicanas.

Não admira, portanto, que o Presidente Nyusi tenha saudado a disponibilidade da UE para trabalhar com o Governo moçambicano nas áreas da logística, saúde e formação militar, bem como noutras que o Governo venha a considerar importantes, e tenha classificado a visita de Santos Silva como “um sucesso”.

No entanto, factos importantes tinham acontecido, pouco antes e por altura da missão de Santos Silva, que haveria a considerar:

  1. Os insurgentes tiveram enormes sucessos no início deste ano, tendo realizado operações até na zona de segurança do grande projecto de liquefacção de gás da empresa francesa Total, obrigando-a a retirar os seus 3000 empregados do local e a interromper os trabalhos de construção.
  2. Na véspera da chegada de Santos Silva, o CEO da Total, Patrick Pouyanné, viajou para Maputo para alertar o Presidente Nyusi de que o investimento da empresa estava seriamente ameaçado e que a situação de segurança precisava de ser melhorada. Foi acordado que as forças de segurança militar seriam reforçadas para proteger as instalações da Total, a fim de que o trabalho pudesse ser retomado o mais rapidamente possível.
  3. Pouco tempo depois, Nyusi reestruturou o exército e nomeou um novo comandante das forças armadas. Na cerimónia de juramento, Nyusi apelou expressamente à necessidade de proteger os projectos de investimento, especialmente os da Península de Afungi. Já a protecção da população que permanece na região dos rebeldes não foi sequer mencionada no discurso de Nyusi.
  4. O chefe de Estado teme que a Total e as outras empresas envolvidas possam retirar-se devido à insegurança no terreno – e tem toda a razão para isso. Notícias recentes mostram quão pouco o grupo Total confia nas garantias de Nyusi. Assim, o director executivo da Total, P. Pouyanné, está agora a estudar com a administração ultramarina francesa de Maiote a possibilidade de utilizar esta ilha no oceano Índico como base logística. Esta é uma opção que seria muito bem-vinda em Maiote e que teria também o total apoio de França.

Falando claramente, isto significa que quando Moçambique pede apoio da UE para formação militar, apoio logístico e equipamento, esses apoios irão servir, pelo menos em parte, para proteger os polémicos investimentos de gás, que, até segundo o bispo de Pemba, são, entre outras causas, responsáveis pela guerra civil.

Para além da promessa de apoio militar, o ministro dos Negócios Estrangeiros português também fez promessas de aumento da ajuda humanitária para as quase 550.000 pessoas deslocadas internamente. Este apoio deverá ser canalizado através da recém-fundada organização de desenvolvimento regional moçambicana ADIN. Esta é também uma opção muito questionável, já que, no início de Dezembro, a ONG moçambicana CDD, que presta, ela própria, apoio humanitário em Cabo Delgado, declarou sobre a ADIN: “Nove meses após a sua criação, a Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN) continua a ser uma instituição ausente e sem nenhum impacto no dia-a-dia da população de Cabo Delgado.”

Também neste caso, Santos Silva demonstra-se indiferente às preocupações que existem sobre a ADIN e segue cegamente os desejos do Governo moçambicano, que até agora não conseguiu transformar a ADIN de um mero tigre de papel numa organização operacional. O compromisso de canalizar a ajuda humanitária da UE através de uma organização governamental que ainda só existe no papel e não mostrou capacidade de implementação põe em perigo uma ajuda de emergência rápida e desburocratizada.

Para o Governo de Nyusi, a visita de Santos Silva foi um sucesso completo:

  1. Questões sensíveis não foram abordadas ou não foram dadas a conhecer publicamente, tudo sob o pretexto de “Moçambique ser um Estado soberano";
  2. Foi-lhe prometido o desejado apoio de formação militar, logístico e de equipamento para unidades especiais do Exército;
  3. Foi-lhe prometida ajuda humanitária através da organização governamental ADIN, esperando-se assim que a população nos campos de refugiados não comece também a insurgir-se contra o Governo; e
  4. Santos Silva regressou repetindo a versão do Governo Nyusi de que a causa do conflito seria exclusivamente uma insurgência islamista, tratando-se pois de uma ameaça geopolítica.

Por tudo isto, há que concluir que o ministro português dos Negócios Estrangeiros chumbou na primeira prova da Presidência Portuguesa do Conselho da UE.

Como representante da UE, perdeu uma oportunidade única de, em coerência com os valores da UE, dialogar com o Governo moçambicano sobre boa governação e sobre a responsabilidade do Governo na situação de pobreza e esquecimento que há décadas existe em Cabo Delgado e que, sem qualquer dúvida, contribui para a actual situação de conflito armado.

Tristemente, volta a confirmar-se a declaração do ex-ministro moçambicano dos Negócios Estrangeiros, Leonardo Simão: “O Governo aprendeu a gerir os doadores e a ajuda, mas nunca aprendeu a desenvolver o país.”

Com um enviado como Santos Silva, a UE é conivente com esta prática.

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