Quantas vezes se pode viver o mesmo dia?

A cada hora novas emoções nascem e desaparecem para, no final do dia, nos deitarmos cansados mas acordarmos cheios de esperança de que isto vai passar. Porque vai passar. Ai vai, vai.

Foto
Miradouro da Senhora do Monte, em Lisboa Marta Rodriguez

Mais um domingo no miradouro da Senhora do Monte, em Lisboa, no muro do miradouro, com o cão de um lado e o saco de pano do outro, bloco ao colo, álcool gel por todo o lado. Olho à minha volta e tento respirar, apreciar o espaço que tenho à frente, o silêncio sem gente. Mas o ar está preso. Mais um domingo de recolhimento obrigatório às 13h em Lisboa, neste Dezembro de 2020. Após várias semanas, já todo o bairro se acostumou a esta nova dinâmica da calma ansiosa, do ter que se estar em casa mas só apetecer estar fora dela, de ter ​deficit ​de abraços e beijos, mas não os podermos comprar nos supermercados fechados.  

Nos últimos nove meses, desde que as restrições de vida começaram, houve um grande ajuste pessoal e colectivo face às nossas rotinas, planos e sonhos. O início foi estranho, um mix de negação e querer fazer tudo bem, qual bom samaritano ou vegan-activista-do-plástico-zero. Ficámos em casa. Mesmo em casa. Depois, aos poucos, passado o medo do primeiro estado de emergência, lá começaram as escapadelas, ora agora, ora depois, e cada vez mais frequentes. Passeamos o cão dez vezes por dia até não nos aguentarmos a nós nem ao bicho, comprámos rolos de papel higiénico suficientes para limpar o bairro inteiro durante três anos; transformámos passeios higiénicos em idas ao parque - afinal, a Natureza cura e com a saúde mental não se brinca

Também os negócios locais tiveram que se ajustar a toda esta nova dinâmica, nada que Fernando Pessoa não tivesse referido na Essência do Comércio, onde escreve que o contexto é fundamental no que toca a ajustar um produto a um público-alvo. Primeiro, tal como nós todos, ou não fossem os negócios conjuntos de pessoas, pairou aquele mix de negação com “the show must go on" ou “estamos tramados”. Cafés, restaurantes, drogarias, padarias e mercearias mantiveram-se abertos, tentando manter mais ou menos as distâncias de segurança, reforçando a higiene e as más-línguas contra o bicho. 

Depois veio o cair da ficha, talvez em Abril, quando se percebeu que a coisa era séria, e foi a vez de fechar as portas ao negócio, aos sonhos e à vida. Muitos destes pequenos negócios começam com um sonho, um propósito maior do que vender bolos ou sapatos, muitas vezes relacionado com causas e práticas próximas de experiências pessoais, como ajudar quem precisa, dar mais conforto ao dia-a-dia ou contribuir para um planeta mais verde. Então, as ruas de Lisboa ficaram ainda mais tristes, mais cinzentas, e as grandes cadeias de hipermercados desta vida mais ricas e mais cheias.

Começámos a vacilar. Será que esta coisa é para durar? 

Felizmente, o ser humano é uma espécie muito inteligente, adaptável e resiliente. Então, lá para meio do ano começámos a ver as mesmas pessoas que se sentiram rendidas e sem forças, talvez já mais descansadas pelo tempo passado em casa com os seus filhos em telescola e companheiro em teletrabalho (inserir LOL) a renascerem. Meteram as mãos com luvas e máscaras à obra para continuarem a servirem-se a si e à comunidade.

Cafezinhos locais a servirem bicas e pastelarias diversas em take away, acordando a nação e adoçando a alma; padeiros modernos a fazerem pão de massa mãe para alimentarem os pais mais ​hipsters; snack bars a cozinhar bacalhau à Brás e febras, alimentando os filhotes que já não aguentavam o atum em lata; lojas-bazar-do-Oriente a safar toda uma geração tech, agora mais ligada pela tecnologia do que nunca; até floristas ​cool a levarem ramos bonitos de porta em porta em bicicletas felizes. Toda uma nova linha da frente que se reinventa a cada dia. 

Neste período da História sem precedentes, criam-se novos heróis do quotidiano com super poderes culinários, energia mágica e efeitos especiais, não usados nem nos melhores filmes de Hollywood. Todos os dias se escrevem novas histórias de esperança por aqueles que eram chamados pequenos mas provaram que o coração, o carácter e a dedicação não têm tamanho, mas sim ​momentum. A cada hora novas emoções nascem e desaparecem para, no final do dia, nos deitarmos cansados mas acordarmos cheios de esperança de que isto vai passar. Porque vai passar. Ai vai, vai. 

Até lá, devagar é a nossa velocidade e um dia de cada vez a matéria a ser aprendida. Já o resto, é a sabedoria da vida. Que em breve estejamos juntos a sério para celebrar.

Sugerir correcção
Comentar