A Chamuçaria: Uma história (de chamuças) às cores e com três lados
Shahid Merali abriu, em Lisboa, A Chamuçaria para valorizar uma especialidade com a qual cresceu e que pode ser muito mais variada do que se imagina. Aqui há até chamuças de peixe e outras doces, com chocolate picante.
Se o rissol de camarão, o pastel de bacalhau ou os croquetes podem saltar do estatuto de petisco para o de prato principal, acompanhados por um bom arroz, por que razão não podemos fazer o mesmo com a chamuça? Foi o que pensou Shahid Merali, que com A Chamuçaria quis fazer de uma das especialidades que sempre acompanharam a vida da sua família um prato com mais declinações do que imaginávamos possível.
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Se o rissol de camarão, o pastel de bacalhau ou os croquetes podem saltar do estatuto de petisco para o de prato principal, acompanhados por um bom arroz, por que razão não podemos fazer o mesmo com a chamuça? Foi o que pensou Shahid Merali, que com A Chamuçaria quis fazer de uma das especialidades que sempre acompanharam a vida da sua família um prato com mais declinações do que imaginávamos possível.
“A chamuça tem uma vantagem”, sublinha. “Permite-nos fazer muito mais recheios e sabores do que um pastel de bacalhau.” É isso que quer provar com este projecto, onde encontramos chamuças de diferentes cores (todos os corantes são naturais) e com diferentes recheios, desde a de choco e lulas à de cabrito, passando pelas clássicas como a de frango, a de frango picante ou a de vegetais, mas também pelas chamuças de sobremesa como a de chocolate negro picante, a de creme de maçã ou a cremosa do chef.
“Uma das coisas que sempre me fez impressão quando era miúdo”, explica Shahid, “era ter na mesa dois tipos de chamuça e não saber qual era o recheio, daí esta ideia das cores”. Aqui tem ainda a de lentilhas amarelas, a de batata picante, a de camarão e a de peixe. Todos os recheios são feitos de raiz e a opção foi não usar nem carne de porco nem de vaca.
É num espaço pequeno mas muito colorido no bairro de Telheiras, em Lisboa, que desde Julho passado encontramos A Chamuçaria, actualmente dedicada em exclusivo ao take-away e delivery porque a pandemia de covid-19 não permite tirar partido da mesa comum, pensada para juntar vários comensais.
Pode-se, portanto, levar para casa as nove variedades de chamuças salgadas e as três doces, além dos três acompanhamentos à escolha: arroz (com três opções de molho, o de caril, o de lentilhas amarelas e o de leite de coco), chips de batata, batata-doce e mandioca, com especiarias, e salada. Tudo a ser temperado, para quem gostar de sabores mais intensos: existe o picante vermelho, feito com malagueta vermelha, e o verde, de malagueta verde e coentros, e ainda o achar de limão e o de manga e um tempero de tamarindo, que “faz uma ligação muito especial” com algumas das chamuças.
“Não sei se reparou, mas é tudo muito à base do número três”, chama a atenção Shahid Merali. Sim, já tínhamos reparado logo à entrada quando somos recebidos pela frase “três lados de uma história”. E há de facto três lados nesta história familiar que começa no Norte da Índia, onde nasceram os avós, passa por Moçambique, onde já nasceram os pais, e chega a Portugal, onde nasceu, em Setúbal, Shahid, que pertence à comunidade ismaelita portuguesa. A própria chamuça é um triângulo, que terá a sua origem mais antiga na Pérsia, tornando-se depois a samõsa, um dos petiscos mais populares em certas partes da Índia.
Shahid cresceu com as chamuças como parte integrante da cultura alimentar da sua casa (uma das tradições da família, revela, é pôr duas a três gotas de limão depois de dar a primeira dentada, por isso no restaurante elas vêm com um limão). Aliás, no centro deste projecto está a mãe, Rosy Daia, a referência para as receitas tradicionais de chamuças que aqui são apresentadas – “todas as que são fora da caixa foram criadas por mim”, sublinha.
Outro detalhe que é algo que, segundo Shahid, “só se come em casa das pessoas que fazem chamuças” são as tiras, aqui também muito coloridas, feitas com a massa que sobra do processo de fabrico das chamuças. “Normalmente a massa é redonda e depois é cortada no formato para se poder dobrar a chamuça” em forma de envelope. “As minhas avós pegavam nisso e fritavam, punham sal, especiarias e ficava um petisco” – daí resultam estas viciantes tirinhas chamadas kurkuriya.
Mas não se pense que fazer uma chamuça é fácil. O processo é elaborado e exige técnica: a massa é de água e farinha, as bolinhas são espalmadas de forma redonda, depois agrupadas de sete a sete, sendo por fim esticadas antes de serem assadas no fogão, de um lado e do outro, sendo cada folha retirada quando está pronta. Cortadas num tipo de rectângulo, são finalmente dobradas – “existem umas dez formas diferentes de as dobrar”, afirma Shahid, “nós usamos a que as minhas avós usavam e que a minha mãe aprendeu” – e recheadas. Bastante mais fácil é comê-las – e A Chamuçaria é o sítio certo para isso. É seguir as cores e decidir qual é a preferida.