A saga de uma vacina anunciada

De desejada a cobiçada, de saudada a malfadada, a vacina anunciada tornou-se temida e corre o risco de vir a ser imposta.

Uma vacina contra a covid-19 tem sido tema recorrente desde que o SARS-CoV-2 invadiu a Europa e a pandemia foi declarada. Os discursos sobre a anunciada vacina foram uníssonos quanto aos fundamentos, processos e finalidades. O fundamento é o de que as vacinas constituem um dos mais notáveis avanços em saúde pública, erradicando doenças e minimizando o risco de infecção na comunidade e o seu impacto no indivíduo. Esta é uma realidade comprovada. O processo é seguro na exigência de investigação de base, na descoberta de um novo fármaco, de experimentação pré-clínica, em modelos laboratoriais e animais, e clínica, nas quatro fases da experimentação humana. Esta é uma realidade certificada. O fim é o de obter uma imunização eficaz, não obstante alguns efeitos secundários ligeiros e passageiros. Esta é uma realidade atestada.

O sucesso comprovado, certificado e atestado das vacinas deverá ser extensível à da covid-19. Mas a narrativa desta vacina nos últimos meses espoletou uma panóplia de inquietações éticas que urge acautelar.

A desejada

A vacina começou por ser desejada. A comunidade científica uniu-se para compreender o vírus e desenvolver meios de o combater, sobretudo com a criação de uma vacina. A cooperação era a palavra de ordem. Exigia-se também avultado financiamento para suportar esta empreitada e organizou-se angariação de fundos, uma “resposta global” para garantir um acesso universal à vacina.

Entretanto, sinais contrários a este movimento galvanizador de aproximação e solidariedade mundial – a única resposta ética a uma pandemia – foram-se avolumando com a tentativa de alguns países alcançarem o monopólio da vacina, a competição entre empresas farmacêuticas, o ataque de hackers a informações privilegiadas, a pré-compra desenfreada de vacinas de diferentes potenciais fornecedores e agora o açambarcamento com muitos países a comprarem mais do que necessitam.

Dos muitos que então proclamavam a vacina como um bem comum, já só resta o secretário-geral da ONU. A cooperação perverteu-se em competição, a solidariedade em açambarcamento, o imperativo universal em prioridade nacional, o desejo em cobiça.

Vacina saudada

E eis que a vacina chegou: não depois de uma década, como frequentemente se verifica, mas em menos de um ano. E não apenas uma vacina, sendo várias as que se anunciam: temos vacinas aprovadas em vários países, outras sob avaliação, mais ainda na fase 3 dos ensaios clínicos e muitas mais nas fases 2 e 1. Temos vacinas que vão do tipo convencional (com vírus vivos atenuados, inativados ou fragmentados) às mais recentes da tecnologia do ARN-mensageiro (injecção de segmento do código genético do vírus criado em laboratório para desencadear a resposta do sistema imunológico). Temos também diferentes vacinas recomendadas para diferentes grupos etários. E todas gratuitas. É uma proeza fantástica, um triunfo ímpar.

Entretanto, a euforia da vitória vai empalidecendo pela disputa do troféu. As vacinas disponíveis são insuficientes para a população mundial. Nos países ocidentais impõe-se o seu racionamento e discutem-se critérios de priorização como a idade, comorbidades, doenças crónicas ou imunodepressoras, profissões de maior risco de contágio, sabendo-se que a maioria das pessoas só será vacinada dentro de um ano. O resto do mundo não sabe quando ou se beneficiará da vacina, não tendo capacidade financeira para a pagar ou condições (de frio, entre outras) para a armazenar e distribuir.

A panóplia de oferta de vacinas contra a covid-19 não impediu ainda a exclusão da maior parte da população mundial, cuja discriminação assim se agrava. Saudada por alguns, parece malfadada para muitos. E o sucesso científico ameaça converter-se num fracasso social.

Vacina temida

Tão desejada quanto saudada, a vacina anunciada tornou-se agora temida. Talvez a disputa pela prioridade na vacinação se torne académica à medida que inquéritos revelam serem muitas as pessoas que recusam a vacina ou que preferem esperar para ver o que acontece aos primeiros vacinados. Instaurou-se a desconfiança.

Desconfia-se porque, desde o início da pandemia, os discursos de instituições, políticos e especialistas têm sido ziguezagueantes, porque as empresas farmacêuticas se digladiam entre si pelos milhões de dólares por que se traduz cada algarismo da percentagem de êxito da sua vacina, e porque muitos países competem para serem os primeiros e vacinarem mais. Desconfia-se, por isso, da inocuidade da vacina, da independência das avaliações e da sustentabilidade das decisões tomadas pelos diferentes intervenientes na contenda, cada um com os seus interesses particulares.

Sem a confiança das populações nenhum programa de vacinação se cumprirá e a imunidade de grupo que salvaguardará a saúde pública poderá permanecer uma miragem.

Vacina imposta

Neste contexto contraditório, que reflecte a gestão que tem sido feita da pandemia, reforça-se a ideia peregrina da obrigatoriedade da vacinação. A hipótese surgiu com a certeza de que a vacina seria uma realidade. Entretanto, a veemência dos protestos pareceu eliminá-la. De facto, apenas a tornou mais insidiosa, disfarçada pelas múltiplas roupagens do politicamente correcto. Primeiro foi a companhia aérea Qantas que anunciou vir a exigir comprovativo de vacinação aos seus passageiros, depois foi a República de São Marino que pondera apresentar a conta do tratamento da covid-19 a quem recuse a vacina e se infecte. Em ambas as situações se reitera o carácter voluntário da vacinação. Sim, é voluntária mas sem ela não se entra hoje no avião, ou amanhã em qualquer outro espaço privado que assim o imponha, ou ainda em espaços públicos declarados sensíveis como sejam hospitais, lares ou escolas. É voluntária, mas se contrair hoje a covid-19 é penalizado com a conta, amanhã também por outras doenças ou acidentes provocados por opções individuais. Inaugura-se uma vertente deslizante que conduz inexoravelmente a excessos difíceis de travar. E agora já há quem sugira pagar às pessoas para serem vacinadas.

Entre o pau e a cenoura não sobra a liberdade. O caminho é a informação rigorosa e a comunicação transparente para ganhar a confiança. A estratégia tem de ser pedagógica, investindo na educação para a saúde, o que conduzirá a escolhas conscientes, livres e responsáveis em qualquer situação. A verdade irrecusável, que a pandemia nos faz viver no quotidiano, é que a minha saúde depende da dos outros que dependem de mim também.

De desejada a cobiçada, de saudada a malfadada, a anunciada vacina tornou-se temida e corre o risco de vir a ser imposta. Aqui chegados, importa reconhecer que a saga da vacina não invalida o enunciado inicial acerca da beneficência das suas bases, da segurança dos seus procedimentos e da eficácia dos seus resultados. Mas permitiu-nos descobrir uma panóplia de problemas humanos que dificultam e atrasam a eliminação da pandemia, interna e mundialmente, e que urge contrariar.

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