Se não queremos que tudo continue como está, é preciso que algo mude

Depois desta experiência única de distanciamento social que temos vivido em 2020, como iremos fazer chegar a arte e a cultura às pessoas, para além do digital? Como vamos conseguir reaproximar-nos uns dos outros? Vamos aproveitar para mudar alguma coisa, ou vai ficar tudo igual?

Esta época é fértil em bons pensamentos e mensagens carregadas de sentimentos positivos e de boas intenções. Este ano, ainda mais, pela pandemia que nos persegue. Acontece que os comportamentos resistem às mudanças impostas por teorias, ideologias, pragas ou ameaças de morte. A verdade é que nunca nos passou pela cabeça que ir a um restaurante, ao supermercado, ao futebol, ao teatro ou a uma exposição fosse um risco. Catástrofes e desastres trazem novas práticas. Na arte e na cultura também. Com exposições, feiras de arte e espectáculos adiados ou cancelados, o digital é algo a potenciar, e muito, mas o que importa mesmo é encontrar formas de voltar a esses lugares e nos reaproximarmos com segurança e imaginação.

Sabemos como a cultura é um elemento crucial para a estruturação do pensamento, a criação de modelos de convivência cívica e o reforço da identidade de uma comunidade. Neste contexto, uma cultura de proximidade responde à máxima de “pensar global, agir local” e posiciona-se como uma das soluções mais inspiradas para os desafios que a sociedade está a enfrentar na atualidade.

A cultura de proximidade ocorre por e para as comunidades locais. Uma cultura de pessoas para pessoas, enquanto estratégia orientada para favorecer ambientes artísticos e criativos num determinado território, apelando à intervenção ativa dos cidadãos e organizações locais, possibilitando deste modo aos atores que representam a sociedade civil uma oportunidade de desenvolver estratégias que contribuem para um entendimento da cultura como modo de vida (“cultural citizenship”, Duxburg e Jeannotte).

Nos últimos anos, a cultura de proximidade tem sido identificada com a “cidadania ativa” apelando a uma política cultural baseada na descentralização, na policentricidade, na inclusividade e na conectividade. Participar na vida local e impulsionar as artes e a cultura são sinónimos de cidadania ativa. No fundo, é ter uma palavra a dizer sobre assuntos globais que afetam cada um individualmente.

Em muitos países têm surgido iniciativas que promovem a cidadania ativa através do desenvolvimento de atividades e programas culturais de proximidade. Na Irlanda, a agência nacional “Create” nasceu para promover o desenvolvimento de práticas artísticas colaborativas no contexto social e comunitário. Em Inglaterra, o Arts Council England desenvolveu dentro do Well London um projeto baseado na arte e no bem-estar, denominado “Be Creative, Be Well”, que consistiu num programa de saúde mental e bem-estar que lançou mais de uma centena de projetos de criatividade, arte e cultura, envolvendo artistas a trabalhar com as comunidades, em colaboração com agentes locais e residentes. Já durante a pandemia o museu MAMbo em Bolonha, desafiado por várias plataformas de cidadãos, reconfigurou o seu espaço expositivo para acolher artistas particularmente afetados pela crise, como os artistas visuais, fotógrafos e designers que moram na cidade, permitindo desta forma que estes continuem a trabalhar nos seus projetos, transformando-se assim num espaço para residência de artistas. Desta forma aproximou-se dos artistas da cidade e está a atrair novos públicos locais.

Em Portugal, há vários exemplos felizes de cultura de proximidade. De escala e características muito diferentes. Do festival Todos, à Cabine de Leitura, da Livraria Solidária, à Orquestra Criativa de Santa Maria da Feira, passando pelo grupo FAZ 15-25 do Museu Vieira da Silva-Arpad Szenes. No Porto, um dos exemplos mais felizes pela escala é, desde sempre, a Fundação de Serralves. A preocupação e empatia com o público local, com os jovens, com os agentes económicos do Porto, com outras instituições culturais, é uma marca que não se consegue ver em mais nenhum equipamento cultural de referência em Portugal. Serralves é, neste ponto, uma verdadeira excepção.

São experiências que ilustram uma mudança do modelo de relações entre público e privado: espaços e edifícios públicos são entendidos como espaços para todos e para o uso de todos e nos quais os poderes públicos delegam muitas das suas responsabilidades na capacidade de os cidadãos de assumirem projetos em benefício da sociedade em geral. Já não se fala em diferenciar iniciativa privada (com fins lucrativos) e iniciativa pública (ao serviço dos cidadãos), mas sim de um espaço comum em que todos participam para oferecer valores à comunidade.

Numa altura em que se fala numa “cultura de cancelamento”, por opiniões ou comportamentos considerados inadequados, em que o objetivo não é mais ouvir, argumentar e defender um ponto de vista, mas aniquilar o oponente, boicotando o indesejado, precisamos do oposto: de proximidade, tolerância, dialéctica, troca de ideias. A proximidade, a presença, o toque são fundamentais para a forma como conhecemos o mundo. Parte da emoção de estar num evento ao vivo é a sensação de partilha e de dúvida sobre a reação dos outros. A limitação do toque a que temos sido obrigados nestes últimos meses poderá servir para aumentar o significado da proximidade.

Além disso, uma cultura de proximidade assente numa estratégia participada e mobilizadora pode ser uma “marca” diferenciadora para um território, uma atracção para o exterior, uma forma de despertar curiosidade, um estímulo para a economia e o turismo, um meio de atrair pessoas, investimento, mecenato, empresas e instituições que se querem associar a uma imagem de filantropia e visibilidade. A proximidade potencia essa relação mais empática com o público, as empresas e os mecenas.

Depois desta experiência única de distanciamento social que temos vivido em 2020, como iremos fazer chegar a arte e a cultura às pessoas, para além do digital? Como vamos conseguir reaproximar-nos uns dos outros? Vamos aproveitar para mudar alguma coisa, ou vai ficar tudo igual?

Inspirados pela quadra e pelo contexto de adversidade, vamos definir proximidade como a palavra de 2021.

Gestor Cultural

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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