Quando as políticas culturais promovem os desequilíbrios do país

Podemos continuar a fazer contas aos resultados divulgados, mas o cenário final será sempre o mesmo: 90% das candidaturas aprovadas e cerca de 92% do financiamento distribuído são de projetos das duas áreas metropolitanas. O que sobra é o que se destina ao restante território nacional.

Se é na cultura que encontramos muitas vezes a vanguarda de importantes movimentos sociais, esperemos que, em Portugal, a política cultural não esteja já a antever as transformações futuras da sociedade portuguesa. Isto a propósito dos resultados do Programa de Apoio - Criação e Edição 2020, recentemente divulgados pela Direcção-Geral das Artes (DGArtes) e que espelham uma profunda desigualdade de abrangência territorial, contrária a qualquer ideia de coesão que queremos para o país.

O alerta da Plateia – Associação de Profissionais das Artes Cénicas de que 70% das candidaturas se restringiam à Área Metropolitana de Lisboa (AML) impele a uma leitura mais atenta dos resultados conhecidos, e aí as coisas tornam-se ainda menos bonitas. À partida, divulgados por NUTII, para além da AML, as 23 candidaturas com financiamento atribuído provenientes da Região Norte fazem crer numa distribuição diferente, mas depois percebe-se que, destas, só três não são da Área Metropolitana do Porto.

Assim, no universo das 110 candidaturas aprovadas, apenas onze são provenientes de todo o país não metropolitano. E os projetos para Regiões Autónomas, Alentejo, Algarve e Região Centro totalizam um financiamento de menos de 200 mil euros num total de 2,4 milhões de euros distribuídos pelo programa. É claro que há uma maior concentração de estruturas, artistas e criativos ligados ao setor em Lisboa e Porto, mas nem aí se encontra justificação plausível para tamanha desigualdade: em números relativos, foram aprovados 20% dos projetos apresentados nas áreas metropolitanas, contra apenas 7% dos projetos das restantes regiões.

Podemos continuar a fazer contas aos resultados divulgados, mas o cenário final será sempre o mesmo: 90% das candidaturas aprovadas e cerca de 92% do financiamento distribuído são de projetos das duas áreas metropolitanas. O que sobra é o que se destina ao restante território nacional.

Esteve bem a DGArtes ao conseguir um reforço orçamental para o programa, face ao aumento do numero de candidaturas no contexto de pandemia. Esteve bem igualmente no reforço da equipa da avaliação perante este aumento de projetos em análise, e até o atraso considerável na divulgação dos resultados será justificável nestas condições. O que não é compreensível, nem aceitável, é que estes concursos continuem a não incluir qualquer ponderação de distribuição regional de fundos alocados.

A lógica das politicas públicas tem de visar a equidade entre territórios, uma questão de coesão e justiça espacial com reflexos ao nível das oportunidades para as próprias estruturas e profissionais, e também para o próprio acesso dos cidadãos à cultura. Tal como estão e como este programa tão bem exemplifica, continuaremos a ver, neste setor, o próprio Estado a reproduzir e a agravar os desequilíbrios que o país já regista.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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