Recordar o Aleixo: “Os pobres não têm direito a olhar para o rio”

Ex-moradores do Aleixo assistiram pela primeira vez ao documentário sobre o bairro que foi demolido na totalidade no ano passado. A Nossa Terra, O Nosso Altar tem como protagonistas as famílias que ali criaram raízes e acabaram por ser despejadas ao fim de um processo de quase uma década.

Foto

Vestida de preto para noite de gala, Luísa Ferreira não esconde estar a ser tomada pelo nervosismo por força do que está prestes a visionar. Estreia absoluta para si, vai regressar a um passado recente doloroso para assistir ao documentário A Nossa Terra, O Nosso Altar no Teatro Municipal Rivoli, no âmbito da 7ª edição do Porto/Post/Doc: Film & Media Festival. Está nervosa porque é uma das protagonistas do filme realizado por André Guiomar, mas também porque a narrativa do mesmo conta um pedaço da história do dia-a-dia do bairro onde viveu durante quase toda a sua vida. Desde que saiu do Aleixo, pouco antes dos últimos prédios serem demolidos, para voltar a ver as paredes da casa onde viveu durante 45 anos tem de recorrer à memória ou a outras imagens que guarda do local.

“Depois falamos”, promete pouco tempo antes das portas do grande auditório se abrirem. Para lá encaminha-se o público do festival que conta com alguns ex-moradores, agora espalhados por vários bairros camarários da cidade. As torres do Aleixo já não estão de pé desde o ano passado. Mas quando se pergunta a muitos dos que lá viveram de onde são, a resposta continua a ser a mesma: “Somos do Aleixo”.

Luz apagada, já com a fita a rolar, um grupo de rapazes surge na tela do auditório preparado para jogar às escondidas nas imediações dos prédios do bairro. Para escolherem quem fica de olhos tapados à espera que os outros se escondam recorrem à cantilena bem conhecida de várias gerações de portuenses de tenra idade: “Aniki bebé Aniki bobó…”. A referência ao filme de Manoel de Oliveira, estreado em 1942, surge com uma distância temporal de oitenta anos e em contextos diferentes. Mas no cerne continuam a estar problemas sociais, ainda que de outra ordem. 

Há nesta referência também um regresso às origens. Da Ribeira, onde se passa a cena do clássico do cinema português, nasceu o Aleixo, no início da segunda metade da década de 1970, na linha do mesmo rio, mas a vários quilómetros de distância, numa zona da cidade distante de tudo o resto e num terreno escondido, a chegar à zona nobre da Foz, onde até à altura ninguém se tinha lembrado de construir habitação. Hoje já não é assim.

De volta ao século XXI viaja-se até 2013. Por esta altura já tinha sido demolida a primeira torre, por decisão do executivo de Rui Rio, e alguns habitantes já tinham saído do bairro. Na data em que o realizador começa a filmar, os sobreviventes do Aleixo lutavam para não receberem carta de transferência para outro local.  

Foto
Marco Duarte

Ao longo de 77 minutos, o filme centra-se no bucolismo da rotina diária de um bairro que vive como se fossem todos família, mas apoiada em duas histórias familiares com mais destaque que servem de guia para a narrativa. Esse dia-a-dia é feito alternado entre a preocupação do abandono de um sítio onde se criaram raízes e a resistência de quem tinha a esperança de nunca dali sair. De fora da lente, salvo curta excepção, ficaram imagens que ajudaram a conotar esta zona da cidade com o consumo e venda de drogas. Chamaram-lhe alguns “o maior supermercado de droga”. 

Talvez fosse necessário entrar na casa de quem lá vivia para se perceber que as excepções não fazem a regra. E não é nessas excepções que o filme se foca. Mas sim na regra. O filme conta a história da Luísa, da Maria João, da Helena, do Israel, da Antonieta, do Zé da Bina (os três últimos já faleceram) e de muitos outros que resistiram até à última para ali continuarem a viver.  

“Havia bairro bonito”

Após uma primeira parte que espelha o lado familiar e festivo do bairro, salta-se para 2019, num embate inevitável com a realidade. O bairro vai abaixo e contam-se os últimos dias para as últimas famílias desocuparem as casas antes da demolição. A lidar com esta situação, ao mesmo tempo, há quem tenha que processar a perda de familiares, que morreram prematuramente. 

Sem saída próxima da esperada para os moradores, entra-se numa espécie de resignação que nasce do cansaço que advém da luta permanente ao longo de quase uma década. Mas a despedida é feita em festa, retratada no documentário, num dos momentos mais comoventes do filme. “Havia bairro bonito. Aleixo dos nossos tempos. Haja Alegria. Havia bairro bonito. Havia. Que foi que se passou? Heroína. Heroína em toda a parte. E a família? Havia bairro bonito. Havia”, canta-se no ringue do bairro ao mesmo tempo que os moradores se desfazem em lágrimas.

Noutra cena, com as casas já vazias, escreve-se numa parede: “Os pobres não têm direito a olhar para o rio”. A autora desta frase é Luísa Ferreira, que após o filme recuperava da emoção que sentiu ao regressar ao passado. Cumpriu o prometido e falou com o PÚBLICO. ”Tivemos de recordar muita coisa. As nossas origens, as nossas raízes. Custa muita”, atira. “É triste ver que depois disto tudo o terreno está ali abandonado. Que nos correram dali à pressa”, continua. 

Agora a viver em Francos, afirma continuar a fazer a sua rotina em Lordelo do Ouro: “Continuo a ir lá às compras. É dali que eu sou e é onde estão os meus amigos”. Como muitos dos ex-moradores do Aleixo Luísa originalmente vivia na Ribeira. “Fui da Ribeira para lá com oito anos. Saí da Ribeira com a promessa de nos darem casas no Barredo. Nunca foi cumprido. Então fomos para ali para ser definitivo. Mas ao fim de 45 anos despejam-nos”, recorda. Ainda tem a esperança de voltar a Lordelo do Ouro, “como foi prometido”. 

Helena Cardinali, que também aparece no documentário, também saiu da Ribeira para o Aleixo na mesma altura. “Atravessado” na sua consciência está um momento que considera ter definido a sua vida. “Votei em quem me despejou de casa”, afirma, referindo-se a Rui Rio. Agora a viver em Ramalde continua a estar associada ao sítio de onde vem: “Para nós e para os outros continuamos a ser do Aleixo”.

O realizador afirma ter criado ao longo da rodagem uma relação com os ex-moradores que prevalece até hoje. Essa relação continuará também na tela: “Estou a preparar uma curta-metragem de ficção baseada na história de outra família do Aleixo”. O filme será protagonizado por actores, mas também por ex-moradores do bairro.

Sugerir correcção
Comentar