O estado da cultura: crónica de uma calamidade anunciada

Qualquer definição de cultura é redutora, e sentimo-lo quando estamos confinados em casa, privados de espaço público. Porque sem cultura, os dias, mais do que cinzentos, seriam vazios, sem sentido.

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Reuters/AJENG DINAR ULFIANA

A nossa identidade vale mais do que uma rubrica do Orçamento de Estado. Porventura valerá mais do que um por cento. Identificamo-nos com as séries que vemos em casa, os filmes premiados, as exposições que visitamos e a peça de teatro que acabou de estrear. A cultura define quem nós somos, projecta os nossos medos e as inseguranças, mas também nos desafia a partilhar memórias e a esboçar ideias de um futuro, mais ou menos próximo. 

Qualquer definição de cultura é redutora, e sentimo-lo quando estamos confinados em casa, privados de espaço público. Porque sem cultura, os dias, mais do que cinzentos, seriam vazios, sem sentido. Cultura também pode ser o culto do futebol, na parafernália de camisolas e cachecóis; é também a nossa relação com a ciência. Porque, segundo Leonardo da Vinci, atrás de um pensamento está uma emoção. Uma emoção que é interior, mas que também é partilhada. 

Nesse sentido, cultura é muito mais do que o sector cultural e criativo. A cultura está nos novos projectos, nas ruas, na criatividade e na disrupção, mas também na preservação da memória, nas grandes salas de outrora, da ópera ao cineteatro, ao museu e ao monumento. E vai muito além das políticas sectoriais, porque está presente em várias dimensões dos nossos dias. A cultura pode até fazer a diferença, para fazer um dia valer a pena. 

É por isso que temo uma desconsideração da cultura, quando 2020 traz tantos problemas para resolver. É que ter salas vazias, sem cuidar da sobrevivência da produção cultural, é um problema incalculável. Um afastamento da cultura significa indiferença perante o mundo, e faz crescer a desmemória e a despertença. Nesse vazio existencial, cresce o medo, dos problemas reais e imaginários, que o mundo possa ser tão aberto, ou que haja espaço para a diferença. Alastra a intolerância, enquanto cresce a apatia. E ganham poder as soluções simplistas e redutoras, do “não ter medo da pandemia" que afecta “maricas”.

Perante ameaças de ficarmos presos em arquipélagos, só pode haver haver mais confiança na troca cultural. Em manter vivo um sector, e também quem dele vive, e a integrá-lo cada vez mais em redes. Porque é também a dar voz ao que de melhor se faz lá fora, que o que se cria cá dentro ganha expressão. Porque a pandemia mostrou, uma vez mais, como estamos todos ligados, e como a resposta aos grandes problemas só pode ser conjunta, mas apoiada na nossa diversidade.

Essa atitude mantém-se, entre artes e ciências, porque num ano em que é tão difícil fazer planos, a necessidade de adaptação foi transversal em todas as áreas. Enquanto os laboratórios mudaram linhas de investigação científica em todo o mundo, as instituições culturais fizeram um trabalho de bastidores de reprogramação, nem sempre visível pelo público. Porque, entre salas com metade da lotação e salas de exposição que fecham mais cedo, poderão até surgir novos formatos neste novo normal. 

Entretanto, criadores de várias áreas transmitem online o que fazem, a partir de casa, melhorando o confinamento de quem os vê. Mas, mais do que pedir salas cheias, é preciso manter o que poderá fazer ainda mais falta no futuro, quando tudo isto passar. 
 

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