A democracia não é um milagre

Não se deixam sentar fascistas à mesa da Democracia de forma inconsequente, porque uma das suas obsessões é a de tomar o poder revirando a mesa e expulsando os outros convivas. Portugal ainda vai a tempo de eliminar este corpo estranho prevenindo o seu alcance do poder efetivo.

Bernie Sanders, ex-candidato às primárias do Partido Democrata, tem sido um dos melhores analistas da política americana. O seu discurso à nação de 24 de setembro sobre o perigo que Donald Trump constitui para a Democracia soma-se a uma série de análises perspicazes de caráter quase premonitório. No entanto, nesse discurso, foi menos feliz ao citar Reagan, que defendia que o ritual democrático quadrienal das eleições era um milagre e não algo de natural. Compreende-se o objetivo de Sanders ao escolher esta frase, o de alertar para o facto de que a Democracia nunca deve ser tomada como um dado adquirido; porém, a Democracia não é um milagre.

A Democracia é uma construção, fruto de um extremo sacrifício, de muito sangue e lágrimas, e também de produção intelectual e educação. A Democracia é um contrato, um compromisso tão forte quanto frágil. Os EUA estão neste momento a compreendê-lo de forma dolorosa. Um só homem consegue abalar aquela que é considerada uma das maiores democracias do mundo. Não se deixam sentar fascistas à mesa da Democracia de forma inconsequente, porque uma das suas obsessões é a de tomar o poder revirando a mesa e expulsando os outros convivas. E é precisamente o que Trump ambiciona fazer, expulsar os Democratas da mesa criando o mito de um partido que seria por natureza fraudulento. O próximo passo, se para isso tivesse poder, seria o da sua ilegalização, tal como pretendeu ilegalizar movimentos antifascistas enquanto elogiava os dos supremacistas brancos.

Em Portugal, este ataque à Democracia é personificado por André Ventura e o seu partido Chega. Ao contrário dos EUA não estão no poder, mas para lá caminham a passos largos, beneficiando da cumplicidade de uns partidos e da total inércia de outros.

Enquanto o Chega era um partido que parecia à margem, sem força eleitoral, foi caminhando sem grandes sobressaltos dentro do Parlamento e na vida pública e mediática, usufruindo de um nível de impunidade surpreendente à vários níveis. De forma reiterada, André Ventura afirmou o seu desprezo pela Democracia, pela Constituição, por valores fundadores como a Igualdade, ou seja, várias foram as vezes que cuspiu no prato que o alimenta. Entretanto, o PSD precisou de uma mão para um poder imediato nos Açores, mas que lhe vai custar caro. Os moderados do partido vão afastar-se e os mais radicais vão preferir o original à cópia. O PSD perde, assim, na ética e na estratégia. O PS confiou que ali estivesse um partido que tiraria votos ao adversário, mas vê enfim que também fica a perder na equação, porque é a si que o Chega tira o poder ao juntar-se ao adversário até poder reinar por si próprio.

Nos últimos dias, devido ao pacto açoriano, assistimos a uma avalanche de constatações indignadas sobre o caráter extremista do Chega e de Ventura, algo que desde 2017 vozes antirracistas e antifascistas têm vindo a denunciar. O partido “anti-sistema” é na verdade um partido anti-Democracia – não nos deixemos levar pelo vocabulário normalizador de ideólogos que se apresentam como investigadores neutros. Para o partido fascista o sistema é a Democracia e é, portanto, a Democracia o seu inimigo. Ao contrário dos EUA, Portugal ainda vai a tempo de eliminar este corpo estranho prevenindo o seu alcance do poder efetivo. Não são suficientes as constatações partilhadas por vários partidos, até do próprio PSD, que na boca do seu vice-presidente Nuno Morais Sarmento afirma que o Chega tem posições xenófobas e racistas. Chegou o momento da coerência.

“O amor da Democracia é o amor da Igualdade”, defendia Montesquieu, a Igualdade é o cimento do tal melhor dos piores regimes em que temos o privilégio de viver. Não se trata de uma luta contra um homem ou um partido, esta é uma luta pela Democracia. Não existem princípios de base na família da extrema-direita com os quais possamos estar de acordo apesar de divergências. Essa é a diferença fundamental entre os adversários políticos que connosco se podem sentar à mesa e os inimigos que nunca vão aceitar as regras, porque a destruição da Democracia é um elemento central da sua matriz.

O partido Chega deve ser ilegalizado, existem elementos objetivos para o fazer, assim como uma adesão popular a essa defesa da Democracia. Portugal não pode deixar que este partido continue a incitar ao ódio e a colonizar os espíritos com ideias contrárias aos nossos valores humanistas. Urge, ainda, uma reflexão profunda e construtiva sobre as falhas do sistema, sobre como proteger a Democracia destes corpos nocivos, porque não basta eliminar a consequência, precisamos de eliminar a causa.

A Democracia não é um milagre, que o diga quem por ela tanto sacrificou, os mortos e os vivos, e a quem hoje temos a desonra de olhar na cara tentando, sem glória, explicar como foi possível permitir o lugar à mesa destes inimigos.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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