Um novo sacerdócio: Portugal e a ciência do oceano

Os desafios ambientais são desafios sociais. E o oceano está no centro dos dois. Aos cientistas do oceano, é-lhes pedido que comuniquem sobre o oceano, mas também que difundam como e porquê devemos viver em nome do oceano. Nasce um novo sacerdócio, porventura essencial para o mundo.

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Rui Soares

O oceano é geralmente interpretado como um espaço diferente. Um espaço sedutor, mas também estranho — de certa forma separado da lógica dos humanos. Há um ditado popular entre os marinheiros, atribuído ao filósofo Anacársis (século VI a.C.), que indica bem o carácter enigmático do oceano: “Existem três tipos de pessoas: as que estão vivas, as que estão mortas e as que estão no oceano.” Misterioso, temido, adorado, cobiçado, frágil, poderoso, desconhecido; o oceano existe para lá do que a razão consegue explicar. Porém, é vital para a vida humana.

Em tempos em que a degradação ambiental, as mudanças climáticas e a ânsia por mais e novos recursos naturais põem em causa a sustentabilidade do planeta, os países — sobretudo os costeiros – viram-se para as profundezas do oceano. É a última fronteira que falta conquistar na Terra. Mas isso acarreta desafios. O maior de todos passa por conhecer “em profundidade” o que está para lá — ou antes, por baixo — dessa fronteira. Incapazes de conhecer diretamente as profundezas do oceano, precisamos de quem o faça por nós. Precisamos de mediadores entre o oceano e a sociedade. A quem cabe essa missão, o “serviço” de conhecer, mapear e nos revelar o oceano para o bem do Nosso Futuro Comum? As Nações Unidas dão a resposta ao proclamarem a próxima década a Década da Ciência do Oceano para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030), atribuindo assim aos cientistas do oceano essa missão de mediação.

Há três anos que estudo os cientistas do oceano em Portugal. O que é o oceano para estes cientistas? E como é que aplicam os seus conhecimentos na sociedade? Sou antropólogo, por isso procuro respostas através de “trabalho de campo.” Nos Açores, na Madeira, e do norte ao sul de Portugal continental conversei com diversos cientistas do oceano. Estive em barcos, escritórios, laboratórios, auditórios, museus, cafés, cantinas, e conferências onde discutem o que é (ou deve ser) o oceano. Este percurso levou-me a resultados inesperados. Vou falar sobre um deles.

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Imagem de capa do Relatório Mundial sobre a Ciência Oceânica publicado pelas Nações Unidas UNESCO, 2017

O oceano está dentro de nós

Em junho de 2019, marquei um encontro com um cientista do oceano já aposentado. Reunimo-nos numa esplanada a meio da tarde numa vila algarvia. Estávamos a conversar há uma hora quando ele me disse: “Vai-me desculpar, mas já sou velho de mais para não ser frontal consigo...” O tom foi de aviso, e isso deixou-me expectante. Encorajei-o a prosseguir, o que ele cumpriu com pragmatismo. Olhou para mim e afirmou: “Devia fazer-me perguntas diferentes...” Ele sabia que o meu interesse era o oceano — aquilo a que se dedicou profissionalmente durante várias décadas — e era sobre isso que tínhamos acabado de falar. A partir dali redirecionou, porém, a conversa para as florestas, os rios, as montanhas, o clima, a atmosfera e, sobretudo, o corpo humano. O oceano permaneceu no centro do diálogo. Simplesmente, ao concentrar-se nesses assuntos, ele dissolveu a separação entre o oceano e “tudo o resto”. Em especial, desafiou a imagem do ser humano como um ser dissociado do oceano, o qual, afirmou, “está dentro de nós”. A sua mensagem foi clara: o oceano estende-se muito para além das suas águas.

A conceção do oceano como algo sem fronteiras, que está em todo o lado, e que existe dentro de nós ao mesmo tempo que nos excede, não é nova. O ecologista Carl Safina escreveu sobre isso no livro Song For the Blue Ocean: “Estamos envoltos por um oceano interior. Pode testar isso consigo: prove as suas lágrimas.”

A ubiquidade salina do oceano é uma imagem que não se cinge ao pensamento poético. Nem surge apenas em conversas de café porventura descomprometidas do rigor científico. Na verdade, esta é uma das ideias mais unânimes entre os cientistas do oceano em Portugal. O oceano, afirmam, estende-se nos ventos, nas nuvens, no oxigénio, na chuva e na neve que gera. Estes “prolongamentos” oceânicos transitam para o espaço emerso e para dentro dos corpos humanos (por exemplo, através do ar que respiramos, da água que bebemos, da comida que ingerimos).

“A omnipresença do oceano sustenta-nos tal como sustenta toda a vida no planeta,” disse uma bióloga marinha às várias dezenas de pessoas que a escutavam numa palestra pública em Lisboa. De forma simples e serena, explicou como o oceano regula o clima, absorve o dióxido de carbono, determina a qualidade do ar e sustenta a biodiversidade. Guiados pelas suas palavras, mergulhámos no poder sustentador do oceano. E os sentimentos de reverência e gratidão pela proteção oceânica inundaram a assistência.

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Rui Gaudêncio

Muitos cientistas defendem que o oceano é, também, o berço da vida. De acordo com esta tese, a vida na Terra começou há cerca de 4,5 mil milhões de anos. O planeta estava então coberto por um grande oceano — quente, ácido e rico em ferro — e com pequenas zonas rochosas emersas aqui e ali. A atmosfera continha, sobretudo, carbono e nitrogénio. Não havia oxigénio. Não havia vida. Mas foi então que das profundezas do oceano surgiram substâncias químicas que, ao subirem pelas águas quentes, possibilitaram a gestação de moléculas orgânicas simples. Essas moléculas geraram outras moléculas, cada vez mais complexas, até que finalmente surgiram moléculas capazes de carregar DNA. Estas unidades químicas foram as primeiras formas de vida a crescer, dividir-se e evoluir. Logo, para os cientistas do oceano, a vida humana é a obra de um criador supremo: a nossa origem vem do oceano, diz-nos a bióloga marinha Sylvia Earle no livro Sea Change: A Message of the Oceans, “e subsiste na solução salgada que percorre as nossas veias.”

Mais antigo do que a vida, o oceano é difundido como o grande Criador. E é nesse sentido que apela a um sentimento coletivo de filiação oceânica — a um “Pai nosso” marinho. Basicamente, apela a um novo género de sacerdócio. De facto, em Portugal, não são só as suas águas que estão a subir e ocupar fisicamente o território emerso. A relevância imaterial, moral, genealógica e canónica do oceano está a alastrar-se à vida terrena. E os cientistas do oceano são quem mais contribui para esse alastramento. São quem mais se empenha em difundir a importância do oceano. No entanto, durante o meu trabalho etnográfico percebi que no centro da motivação missionária destes cientistas está um presságio apocalíptico. “Como as coisas estão a evoluir, vamos morrer todos,” disse-me um oceanógrafo em Aveiro. “É que, se o oceano morre, morremos todos.” O oceano não representa apenas o princípio e a continuidade da vida no planeta. Pode, também, significar o fim de “todos”, de tudo. É o absoluto. E está em risco.

O oceano-Criador na era do Antropoceno

Entre outras situações preocupantes, o aquecimento das águas do oceano e a sua acidificação, o aumento da poluição marinha, a subida do nível do mar, a sobrepesca, a redução da biodiversidade marinha e a mineração no solo oceânico estão a tomar proporções catastróficas. Estas são patologias que põem em risco as condições de vida no planeta. E é a atividade humana, afirmam os cientistas do oceano, que está a causar estes males; ou seja, a degradação do oceano. Sendo assim, a conduta humana tornou-se numa área de intervenção natural para os cientistas do oceano. “A luta pelo oceano é uma luta contra os modos de vida das pessoas”, disse-me, em Faro, uma especialista em sedimentos do mar profundo. O seu argumento coincide com a tese da “Grande Aceleração” publicada em 2004 pelo geólogo Will Steffen. Baseada em dados do Programa Internacional de Geosfera-Biosfera, esta tese visa demonstrar a relação que existe entre o aumento de 12 atividades socioeconómicas e 12 mudanças biofísicas no planeta.

Estamos na era do Antropoceno. E isso renova as questões mais fundamentais para o mundo e (logo) para a humanidade. No Faial, um cientista do oceano falou-me sobre uma dessas questões, aquela que o guia no seu trabalho: “Como é que nos podemos redimir do mal que já causámos?” Muitos outros cientistas do oceano tomam para si a tarefa de atender a essa questão. Procuram-na em respostas nos projetos científicos que desenvolvem. Depois, usam as respostas e os resultados que obtêm nesses projetos para difundir ensinamentos sobre extinção e salvação, o bem e o mal, não só em linguagem científica, mas também em comunicações e publicações para o grande público. E, cada vez mais, inundam os seus argumentos com sentimentos.

Em 2019, o cientista do oceano Gui Menezes e atual secretário regional do Mar, Ciência e Tecnologia dos Açores, reuniu-se com os cientistas do oceano da Universidade dos Açores e reforçou isso mesmo: “Na comunicação e divulgação de ciência, é preciso mexer com as emoções das pessoas, para ser mais fácil entenderem o trabalho dos cientistas e a sua importância.” De facto, hoje, ser cientista do oceano passa muito por ter uma vocação para “o serviço” no qual o sentimento se associa à ciência.

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Impressão em tela mostrada na exposição de arte itinerante “O que vai, volta”. A imagem apresenta o oceano saturado com plásticos. É inspirada na xilogravura A Grande Onda de Katsushika Hokusai, publicada entre 1830-1833 Bonnie Monteleone

Num dos encontros Conversas com Mar promovidos pela Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC), uma geóloga marinha fala à assistência sobre o dever ético que o estado atual do oceano desperta: “Só mudando-nos a nós mesmos é que conseguimos mudar o mundo para melhor.” Noutra palestra, no Centro Cultural de Belém, um biólogo marinho dirige-se a um grupo vasto de pessoas que o escuta com atenção: “O oceano ensina-nos que somos uma pequena parte de um todo, mas na qual todas as nossas ações contam.” No final do encontro, faz um último apelo: “Por favor, para o bem de todos, passem a mensagem do que vos disse às vossas famílias e aos vossos amigos e amigas.”

A deterioração socioecológica do planeta apela ao surgimento de novos sacerdotes. Sobretudo, apela a uma nova ética de relacionamento entre os humanos, e entre os humanos e o meio envolvente. Os cientistas do oceano estão na vanguarda deste apelo. Falam sobre o estado do nosso planeta oceânico, mas também de como devemos e não devemos agir sobre ele. E assim surge um novo sacerdócio – fundamental.


Antropólogo, ICS-ULisboa


Texto desenvolvido no âmbito do projeto Portugal is Sea: Anthropological and Ethnographic Engagements with “the Natural”. Este projeto é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/115088/2016).


Para saber mais, consulte: www.portugal-is-sea.org

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