O Plano de Recuperação e Resiliência e a coesão territorial

A ausência de uma visão estratégica para o país justifica, provavelmente, a dispensa de uma matriz territorial para enquadrar os investimentos preconizados. No PRR o território não entra, nem conta.

"Chegamos ao fim de dois fenómenos interdependentes: a ‘hiper-globalização’ e a ‘hiper-metropolização’. O (modelo) futuro deve fixar as suas raízes nos nossos territórios.”
Pierre Sabatier, economista

1. O Governo entregou recentemente em Bruxelas um esboço do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que quer “promover a transformação estrutural e lançar as bases para uma economia de futuro”. Nas 66 páginas do documento, sumário e incompleto, escreve-se sobre um “um futuro para Portugal”, os “roteiros para a recuperação e a resiliência”, o “modelo de governação e execução”, o “impacto global” no crescimento do PIB, na taxa de desemprego ou no saldo orçamental. Mas a substância da proposta, que diz assentar num “sólido quadro estratégico” e “visar um ambicioso ímpeto reformista”, centra-se na listagem e descrição das 64 medidas e projetos, arrumados em três dimensões estruturantes (Resiliência, Transição Climática, Transição Digital) e em nove roteiros temáticos (vulnerabilidades sociais, potencial produtivo e emprego, competitividade e coesão territorial, mobilidade sustentável, descarbonização e bioeconomia, eficiência energética e renováveis, escola digital, empresas 4.0, administração pública digital), com um investimento global de 13.944 milhões de euros.

2. O que surpreende neste Plano é a ausência de uma qualquer visão estratégica, objetiva e circunstanciada, para o país. O PRR não é um plano, é um embrulho. O embrulho das seis dezenas de medidas e projetos retirados das gavetas dos ministérios, como confessou recentemente o ministro do Planeamento, Nelson de Souza. Sim, bem sei que o documento do professor Costa Silva merece alguns parágrafos no texto, mas apenas para dar um ar sério e respeitável à coisa ou justificar os títulos dos “roteiros” temáticos. O seu uso e utilidade neste Plano resume-se a esta função decorativa. Ora um amontoado de projetos não faz um plano, como uma lista de hashtags não configura uma estratégia. A não ser que o Governo, animado por um estranho pensamento mágico, acredite piamente que a resolução dos problemas estruturais do país – produtividade, competitividade, qualificação, desigualdades sociais e territoriais, etc. – decorrerá, mecanicamente, da digitalização ou da descarbonização, das energias limpas ou da eficiência energética, etc. Mas, nesse caso, não estaremos a confundir os meios com os fins? É que a resiliência, a transição digital ou a transição climática, embora indispensáveis para garantir um futuro sustentável, serão de pouca utilidade se não estiverem alinhadas com uma estratégia que vise, por exemplo: uma balança comercial excedentária, a criação de emprego qualificado ou a redução da pobreza e das assimetrias regionais.

3. A ausência de uma visão estratégica para o país justifica, provavelmente, a dispensa de uma matriz territorial para enquadrar os investimentos preconizados. No PRR o território não entra, nem conta. A questão que se coloca é, pois, a de saber se qualquer estratégia de desenvolvimento que vise tornar o país mais seguro, sustentável, resiliente, competitivo e coeso pode ignorar a dimensão territorial. Na nossa opinião, não. As assimetrias regionais são não só um travão à competitividade e à sustentabilidade do país, mas, sobretudo, uma ameaça séria à coesão nacional. A concentração de pessoas, empregos e atividades numa estreita faixa litoral e, sobretudo, nas áreas metropolitanas, tem-se acentuado nas últimas décadas e é responsável por uma fatura (e fratura!) social, económica e ambiental cada vez mais pesada e agrava os riscos sanitários ou intensifica os efeitos da crise social e económica, como a pandemia da covid-19 veio demonstrar. Ora se o objetivo “não é regressar ao ponto em que estávamos em fevereiro”, como afirma o primeiro-ministro, porque é que o PRR repete a mesma receita centralista, avulsa e de navegação à vista que nos trouxe até aqui? E porque é que insiste em cristalizar a macrocefalia metropolitana em vez de promover o reequilíbrio territorial do país?

4. O roteiro para a “Competitividade e coesão territorial” é não só um bom exemplo da arte e da técnica do embrulho, tão caras ao Governo, como expõe de forma eloquente todos os vícios de que padece o PRR: nenhuma visão de conjunto, nenhuma estratégia, nenhuma matriz territorial, nenhum objetivo específico, nenhuma meta palpável. Apenas uma surpreendente listagem de investimentos em infraestruturas, florestas e gestão hídrica, num total de 1939 milhões de euros. Um valor inferior, pasme-se, aos 2187 milhões de euros previstos (só!) para habitação social e a expansão das redes de metro do Porto e Lisboa. O que diz bem do lugar que a coesão territorial ocupa nas prioridades do PRR e do Governo para o futuro do país.

Mas as surpresas não ficam por aqui. Em matéria de infraestruturas, e apesar da bondade das medidas propostas e do investimento previsto de 833 milhões, desconhecem-se o racional e os critérios de seleção dos projetos a financiar e o seu contributo efetivo para a competitividade e a coesão territorial. Os 665 milhões atribuídos às florestas servirão para financiar, engenhosamente, os encargos e os compromissos estatais com a prevenção e a defesa contra os incêndios florestais, e não, como seria expectável, a valorização dos recursos, a criação de riqueza produtiva ou de emprego qualificado. E, em nome da gestão hídrica, serão investidos 441 milhões na construção de uma barragem no Alentejo (Pisão) e no plano de eficiência hídrica do Algarve. Será com medidas como estas que o Governo espera reduzir as disparidades do PIB per capita entre a Área Metropolitana de Lisboa (130,8) e o Tâmega e Sousa (60,3) ou a diferença do valor mediano do rendimento bruto anual entre os portugueses residentes no concelho de Oeiras (13.527€) e no concelho de Resende (5370€)? Serão estas as medidas necessárias para travar e inverter a sangria demográfica e o declínio socioeconómico que assola quase 2/3 do território nacional?

5. A resposta à crise social e económica é uma oportunidade única para Portugal corrigir os seus problemas estruturais e repensar o seu desenvolvimento. O PRR deveria ter um papel essencial nesse duplo desafio, contribuindo não só para o relançamento da economia, mas também para romper com o paradigma territorial saído da globalização e que nos fazia acreditar que “fora das áreas metropolitanas não há futuro”. Mas, infelizmente, assim não é. O PRR é mais do mesmo e, portanto, os resultados esperados não podem ser muito diferentes daqueles que já conhecemos: um território cada mais enquistado em torno de dois ou três nódulos capitais; um país cada vez mais espacialmente desigual e injusto. Será este o Portugal que queremos continuar a ter em 2030?

Deputado e Coordenador da Plataforma Portugal Interior 2030

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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