Em nome do interesse público asfaltam-se caminhos rurais em área protegida da costa alentejana

A abertura, beneficiação ou alteração de acessos viários em plena Reserva Ecológica Nacional, entre a Zambujeira e o Brejão, está sujeita a parecer do ICNF que diz não ter recebido qualquer pedido nesse sentido.

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Quem neste Verão decidiu ir da praia Zambujeira do Mar à do Carvalhal encontrou, em vez da habitual estrada de terra batida encontrou uma rua asfaltada que serpenteava pelo meio dos montes, em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e Reserva Ecológica Nacional. Este tipo de impermeabilização é proibido em áreas protegidas mas a situação foi ultrapassada pela declaração de interesse público emitida pelo Governo. O que permitiu não ter de ser pedido parecer a quem decide sobre intervenções nas zonas classificadas: o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

No passado mês Junho, Francisco Ferreira, dirigente da organização ambientalista Zero, antecipava ao PÚBLICO as eventuais consequências resultantes da colocação de betuminoso numa estrada sobre uma duna na praia de Fonte da Telha/Almada: “A gravidade do que se está a passar é muito mais dramática em termos das implicações para o litoral português do que pode parecer. Não é apenas a Fonte da Telha. Esta situação é um marco”. Na altura em que expunha a sua preocupação, já decorria no sudoeste o asfaltamento de cinco caminhos vicinais e da estrada de terra batida entre a Zambujeira do Mar e o Brejão, no concelho de Odemira, onde as estufas não páram de surgir.

Os impedimentos legais que ao longo de anos travaram as intervenções mais significativas nos caminhos paralelos à costa alentejana que foram mantidos em terra batida por se localizarem no interior da Reserva Ecológica Nacional (REN) foram superados com recurso ao Despacho n.º 818/2020 publicado no Diário da República de 21 de Janeiro.

No seu conteúdo, é reconhecido pelo Ministério do Ambiente e Acção Climática (MAAC) e pelo Ministério da Agricultura (MA) o “relevante interesse público no melhoramento de caminhos agrícolas existentes entre a área da Zambujeira do Mar e o Brejão”. O teor da decisão destaca ainda o “interesse económico e social do projecto”, considerando-o “fundamental para melhorar as acessibilidades intra-regionais, o escoamento de produtos agrícolas, o incremento da actividade turística de âmbito balnear e a redução da emissão de poeiras na envolvente dos caminhos”. E conclui vincando que “os impactos negativos sobre a REN não são significativos”.

No entanto, o Plano de Ordenamento do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (POPNSACV) diz que fica sujeita a parecer do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a “alteração de estradas, caminho, trilhos ou aceiros, incluindo as obras de beneficiação, manutenção, conservação e ampliação, quando impliquem a destruição do coberto vegetal ou a alteração da plataforma existente”.

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As estufas no litoral da Zambujeira Google

O PÚBLICO solicitou ao ICNF um esclarecimento sobre a intervenção no caminho em terra batida que ligava Zambujeira do Mar ao Brejão, mas este organismo informou que “ao ICNF não chegou qualquer pedido de parecer, como tal não” se pronunciou sobre as intervenções efectuadas.

Também à Câmara de Odemira foi solicitado um comentário sobre a colocação do betuminoso nos caminhos vicinais, mas a autarquia adiantou apenas que a referida intervenção “teve como dono de obra a Associação de Beneficiários do Mira (ABM), tendo sido efectuada com financiamento do PDR 2020.”

No entanto, a declaração de interesse público expressa no despacho do MAAC e MA, foi antecedida do “reconhecimento do Interesse Público Municipal da obra”, aprovado por unanimidade pelo executivo municipal (PS e CDU) a 07 de Fevereiro de 2018. A acta na reunião, consultada pelo PÚBLICO refere que Associação de Beneficiários do Mira (ABM) formalizou junto do Programa de Desenvolvimento Rural - PDR 2020 uma candidatura para “beneficiação de alguns caminhos vicinais, (…) com o intuito de melhorar as condições de circulação rodoviária e aumentar a segurança”. 

Mas como as intervenções vão incidir na Reserva Ecológica Nacional, a ABM informa que se “torna necessário proceder ao Reconhecimento de Interesse Público da obra”. O executivo municipal considerou que “não existe qualquer impedimento à formalização da pretensão” deste reconhecimento. E fundamenta: o asfaltamento dos caminhos “vai garantir uma série de benefícios no que diz respeito à circulação rodoviária, facilitando a deslocação de pessoas e bens nestas zonas, mas também às diversas empresas agrícolas que operam nas zonas abrangidas pelos caminhos em apreço, criando desenvolvimento para a economia da região e do concelho”.

Assim, os caminhos que foram “impermeabilizados”, como refere o despacho do Governo, somam, no seu todo, 8130 metros de terrenos “integrados na Reserva Ecológica Nacional entre a área da Zambujeira do Mar e o Brejão”. A obra de “melhoramento de caminhos agrícolas do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira” foi financiada através de fundos comunitários e teve um custo total de quase 2,9 milhões de euros.

A decisão tomada pela autarquia contrasta com disposições do Plano Director Municipal (PDM) de Odemira. O documento, no seu articulado, destaca: nos Espaços de Protecção e Valorização Ambiental “dever-se-ão fomentar (…) práticas agrícolas e, ou, florestais extensivas em detrimento de intensificações culturais consumidoras de fertilizantes e pesticidas ou herbicidas químicos e orgânicos”. A esmagadora maioria das empresas que operam no perímetro de rega do Mira pratica agricultura intensiva.

A declaração de interesse municipal aprovada no executivo municipal recebeu igualmente o voto favorável de todos os elementos da Assembleia Municipal de Odemira (PS,CDU, PSD e BE).

O PÚBLICO solicitou esclarecimentos à Associação de Beneficiários do Mira mas não obteve resposta.

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