As eleições numa democracia doente

Não é a velha clivagem saudável entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo que está em causa: é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.

A democracia na América está doente e, sabia-se, o remédio convencional das eleições jamais seria suficiente para a recuperar. Num corpo político e social com fracturas intransponíveis, sem espaço de diálogo e de compromisso, a braços com uma crise crescente de confiança nas instituições, com uma parte da população fixada na ideia de que a democracia é apenas um artifício dos políticos para lhe roubar o direito à cidade, é difícil afirmar valores morais, princípios republicanos, ideias de soberania ou de legitimidade baseadas na vontade popular.

A América elegeu Donald Trump com a sensação difusa de que a democracia liberal se tornara uma farsa e voltou a entregar-lhe mais de 67 milhões de votos por acreditar que essa farsa continua. Uma vitória de Joe Biden permite acreditar numa convalescença longa e penosa; a reeleição de Trump confirmará talvez a sua agonia.

Se os americanos elegeram em 2016 um fanfarrão demagogo e impreparado, era possível suspeitar que o fizeram por desconforto, por raiva ou, simplesmente, por protesto contra a sua adversária. Mas se tantos americanos insistiram em Trump em 2020, depois de anos de erros, de mentiras, de logros, de falsas promessas, de perturbações e ameaças, de cumplicidade com a guerra racial ou cultural, de falta de transparência em questões cruciais como os impostos, é porque a democracia se tornou uma moeda de escasso valor facial.

Não é a velha clivagem saudável entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo que está em causa: é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.

A responsabilidade do problema não é, como tantos dizem, da imprensa liberal, que fez o seu dever de expor mentiras, o nepotismo ou a crendice no combate à pandemia. Nem das divergências de um país de extremos, apesar das feridas abertas do racismo.

Na procura de uma resposta para a doença da democracia, o efeito Trump pode então ter uma utilidade – a de demonstrar que não há democracia na desigualdade extrema. Quando as classes trabalhadoras dos subúrbios empobrecem, quando 1% dos americanos controla 40% da riqueza nacional, a tolerância acaba, a revolta cresce e a democracia degrada-se.

É neste pântano social e político que nascem fenómenos como o de Trump. Ele, está provado, não tem soluções para o problema (até o agrava via política fiscal). Mas, ao continuar a ser capaz de captar a indignação e o descontentamento, prova que as democracias adoecem quando deixam de se preocupar com as pessoas. Mesmo que perca, a força de Trump está aí como um aviso. Deixou de ser possível vê-lo como um acidente.

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