Há “gritos” a nascer nas paredes das cidades – e denunciam a violência contra as mulheres

Há um ano que o colectivo Les Colleuses marca a paisagem de várias cidades francesas com frases feministas. A ideia saltou fronteiras e chegou a Lisboa. Estes “gritos nas paredes” mostram que “em cada esquina há uma amiga” – e é online que ganham uma segunda vida. Afinal, que papel é que os muros ainda têm nas lutas sociais dos dias de hoje?

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Ondine e Catherine preparam as colagens num estúdio junto ao Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa Daniel Rocha

Desde as grandes cidades, como Paris ou Marselha, até às pequenas comunas espalhadas por França, como Montbrison ou Biarritz, há mulheres que saem de casa, coordenadamente, quando anoitece. Umas levam baldes de cola, outras levam pincéis ou amontoados de folhas brancas com letras pintadas a preto. Um pouco por todo o país, formam grupos para colar, nas paredes e muros, frases como “silêncio não é consentimento”, “não se mata por amor” ou “a tua voz é importante”.

As inúmeras colagens sobre violência doméstica e femicídio são obra de um colectivo feminista francês, chamado Les Colleuses, nascido no Verão de 2019. É composto activamente por 1500 pessoas, na maioria mulheres jovens que partilham a vontade de arrastar para o espaço público os assuntos que se escondem na vida privada. “A violência sobre as mulheres acontece muitas vezes em casa. Nós queremos levar estas mensagens para a rua para que todos vejam, seja no caminho para o supermercado ou para o trabalho”, diz ao P3 Noémie Backsy, uma das organizadoras do movimento.

Em França, o número de queixas por violência doméstica aumentou desde que o país entrou em quarentena e o registo de femicídios tem subido nos últimos anos. Perante este cenário, Noémie reforça que estas colagens são feitas a pensar nas vítimas. “Muitas vezes, são vítimas a escrever para outras vítimas, partilhando uma mensagem de força”, explica. E, nos últimos tempos, têm conseguido mudar trajectos – o grupo recebe constantemente mensagens de mulheres que dizem terem sido surpreendidas pelas colagens e que estas serviram de derradeiro incentivo para “mudarem de caminho” e “irem à polícia fazer queixa dos seus actuais ou ex-companheiros”, diz a parisiense de 24 anos.

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O colectivo Les Colleuses foi convidado por membros do Secretariado de Igualdade entre homens e mulheres para debater sobre a forma como as queixas de violência doméstica são recebidas pela polícia Instagram/collages_feminicides_paris

Apesar de as colagens em espaços públicos serem ilegais neste país, o colectivo tem ganho reconhecimento na esfera política – já foi convidado a participar, junto de outras associações, em reuniões com membros do Secretariado da Igualdade entre Mulheres e Homens. Mas, para Noémie, a maior conquista é o movimento continuar a crescer: nasceu em Paris, espalhou-se pelo país – por exemplo, Lyon, Toulouse, Lille, Brive-La-Gaillarde, Sablé sur Sarthe – e saltou fronteiras. Chegou ao México, Canadá e a vários países europeus, como Londres, Itália, Bélgica, Espanha ou Lisboa.

“De repente, senti-me com uma multidão”

No final do ano passado, Ondine estava na sua cidade natal, Marselha, a visitar a família. O movimento Les Colleuses​ já fervilhava nesta cidade e a jovem juntou-se a algumas acções. Quando regressou a Lisboa, onde já vive há quatro anos, desafiou algumas mulheres a formar um grupo de colagens. Catherine Boutaud, de 33 anos, foi uma das primeiras a alinhar no desafio. Já conhecia o movimento desde o ano anterior, quando, numa noite em Paris, se deparara com a frase: “Não queremos contar as nossas mortes.” “Nunca me esqueci desse momento. Estava sozinha, mas de repente senti-me com uma multidão”, relembra a ilustradora e cineasta francesa, que vive em Lisboa há 13 anos.

Reuniram seis activistas, formaram o grupo Colagens Feministas e no início do ano começaram as primeiras reuniões, onde pensavam e escreviam as frases. Como explica Catherine, as etapas seguintes são organizadas “para não se perder tempo”: deixam a tinta secar por uns dias, enquanto percorrem a cidade “com um olhar diferente”, anotando no Google Maps as potenciais paredes para afixar as mensagens.

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No início das colagens, o grupo teve de aprender “a dinâmica das paredes”, diz Catherine. “Os muros também têm questões de território e linguagem, como não colar nada em cima de pinturas já feitas”, explica. Daniel Rocha

Quando já têm vários pontos anotados no mapa virtual, começam as colagens, que são sempre um trabalho de equipa: uma passa cola na parede, outra fixa as páginas e volta a passar a cola. “Demoramos poucos minutos”, diz Catherine, que relembra, em particular, a colagem da frase “em cada esquina há uma amiga”, uma adaptação da letra da canção Grândola, vila morena, de Zeca Afonso. Nas semanas seguintes, a activista tem sempre o hábito de passar perto das mensagens. Nesse caso, recorda, “rasgaram logo a palavra ‘amiga’”.

Que espaço nas paredes é dedicado às lutas das mulheres?

A tradição de usar as paredes como veículo de partilha de ideias é notória em Paris pelo menos desde o movimento de Maio de 68, e em Portugal também ganha mais espaço depois do 25 de Abril – apesar de na ditadura já existirem algumas pichagens feitas com tinta reflectora, visível apenas de noite, “trocando as voltas às equipas de limpeza do Estado Novo”, explica a investigadora do Instituto Universitário de Lisboa Helena Freitas, que dedicou a sua investigação de doutoramento ao muralismo como forma de comunicação alternativa.

Depois da intervenção da troika em Portugal, o muralismo ressurgiu no país, considera a investigadora. Nas paredes há temas que se mantêm transversais nas últimas décadas, como as condições laborais ou a educação. Em relação às lutas das mulheres, as pinturas são pontuais. Helena Freitas destaca os muros pintados aquando dos referendos sobre a despenalização do aborto – que, uma vez vinculados à actualidade, podem perder força ao longo dos anos. Por outro lado, o movimento Les Colleuses destaca-se principalmente por reunir assuntos com maior “transversalidade e durabilidade”.

Ao contrário do muralismo, estes grupos recorrem ao papelógrafo (menos duradouro nas paredes), utilizado pelas brigadas muralistas chilenas no final dos anos 80. “Muda a técnica, mas mantém-se o suporte e, seguramente mais importante, conserva-se a visibilidade proporcionada pela actuação em plena rua, onde a palavra antes silenciada ganha a sonância de um grito”, diz a investigadora.

Catherine corrobora esta perspectiva, descrevendo as colagens como “gritos nas paredes” e não “um gesto artístico”. “É uma forma de marcar as ruas onde ouço piropos, onde sou assediada ou perseguida. É nessas ruas que quero deixar uma mensagem”, acrescenta.

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Nos últimos meses, as activistas de Lisboa têm desafiado associações feministas a fazer colagens noutras cidades do país Daniel Rocha

“No online as colagens vivem para sempre”

Na opinião de Helena Freitas, as mensagens nas paredes conseguem, “tanto ou mais do que outrora”, criar um sentimento de comunidade. Por exemplo, Catherine recorda uma colagem na praça de táxis do Martim Moniz, em Lisboa, em que as activistas pediram, em brincadeira, para os taxistas protegerem as folhas. “Eles disseram que não iam deixar ninguém rasgá-las”, graceja.

Mas, além da comunidade física, circunscrita ao local onde se encontra um muro, existe agora uma nova aliada: a comunidade virtual, que faz o mural ter “uma segunda vida e mais simpatizantes, expandindo o seu alcance”, acrescenta a investigadora.

Seja em França ou em Lisboa, é nas redes sociais que os colectivos convidam as pessoas a juntarem-se às colagens – o grupo francês já conta com mais de 75 mil seguidores no Instagram. No contexto francês, também organizam campanhas de crowdfunding, marcam encontros, debatem temas e até fazem votações através de redes sociais como a Discord.

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Neste mês, o grupo Les Colleuses organiza um encontro nacional online com os núcleos das várias cidades francesas – e já contam com cerca de 200 interessados em participar. Daniel Rocha

Por cá, o grupo regozija-se de retomar as colagens este mês, depois da paragem causada pela covid-19. Apesar de as frases serem passageiras, resistindo nas paredes apenas alguns meses, o colectivo troca as voltas ao tempo ao construir “um arquivo de imagens” nas redes sociais. É lá que estas frases ganham uma segunda vida. “No online, as colagens vivem para sempre”, conclui Catherine.

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