A espinha dorsal do SNS

Quando levamos às conversas com o governo a necessidade de pensar de forma mais abrangente a saúde, foi com a consciência que a espinha dorsal do SNS são os seus profissionais.

A pandemia tirou-nos da nossa zona de conforto. Confinamento, distanciamento, álcool gel, máscaras, viseiras, léxico que passou a dominar o dia a dia. 2020 pode ser original, mas está longe de deixar saudades.

É nestes momentos de instabilidade que a vida nos mostra os pilares fundamentais. O Serviço Nacional de Saúde, que também passou (e está a passar) em 2020 pelas suas maiores provações, foi o garante do acesso à saúde e passou com distinção quando comparado com os seus congéneres.

Se há quem diga que foi o improviso nacional que permitiu passarmos com sucesso a curva apertada da primeira vaga de covid-19, convém lembrar que a sorte dá muito trabalho. E foi o trabalho de décadas, contra inúmeros cortes orçamentais e preconceitos ideológicos vários, que permitiu ao SNS passar este desafio. Ainda bem para todos nós.

Poderia haver quem tivesse dúvidas quando o Bloco de Esquerda colocou na agenda a necessidade de criar uma nova Lei de Bases da Saúde. A nossa preocupação com a saúde do SNS já vem de longe e, como sabemos da importância que tem nas nossas vidas, queríamos garantir uma resposta de qualidade. Hoje ninguém duvida da importância desse caminho. Foi na sequência desse processo negocial com o governo que, no final de 2019, chegámos a acordo para o reforço do SNS com 8400 profissionais, contratações a realizar nos anos de 2020 e 2021. Ainda não estava nos nossos horizontes a crise pandémica, mas havia a certeza de precavermos as necessidades do país.

O número das contratações pareceu excessivo a muita gente. No entanto, convém contextualizar que a média anual líquida de contratações para o SNS rondava os 3500 profissionais, pelo que se pretendeu um aumento de 20% face à dinâmica que vinha desde 2015. Ainda assim, sabendo que era necessário fazer mais para defender o SNS, a proposta de contratação foi acompanhada pela definição de um regime de exclusividade para os profissionais do SNS e o objetivo de internalizar os gastos crescentes em meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Somava-se a estas pretensões a valorização das carreiras do SNS como forma de manter e motivar os profissionais.

Chegou a pandemia e aconteceu um movimento inesperado: no decorrer do ano o SNS perdeu quase mil médicos. Há exemplos práticos que materializam estes recuos: o encerramento da urgência pediátrica do hospital de Évora, os problemas no Garcia de Orta, as ameaças de demissão de vários diretores de serviço um pouco por todo o país e o sobressalto no número de pessoas sem médicos de família. Da promessa de garantir médicos de família a todas as pessoas ficamos com a dura realidade de termos quase um milhão de pessoas sem médico de família devido à saída de clínicos.

O último concurso para médicos de família mostra como se tem de fazer mais para atrair profissionais: o governo queria contratar 435 médicos, houve 319 colocados, assinaram contrato apenas 284. No entanto, ao longo do ano de 2019, prevê-se que se possam reformar 290 clínicos de medicina familiar. O resultado final é que teremos perdido médicos de família no ano de 2020.

Este exemplo mostra como a política de saúde deve ter a devida preparação. Não se esgota em concursos e anúncios, tem de ter conteúdo e horizontes. E isso tem faltado. Um exemplo quase anedótico desta fragilidade do SNS aconteceu em Barcelos: a abertura de um hipermercado levou a uma razia nos assistentes operacionais do hospital local, porque o salário e as perspetivas destes profissionais se mostraram incapazes de fazer frente à concorrência.

Quando levamos às conversas com o governo a necessidade de pensar de forma mais abrangente a saúde, nomeadamente no cumprimento dos preceitos previstos na Lei de Bases da Saúde, foi com a consciência que a espinha dorsal do SNS são os seus profissionais. Para não ficarmos com concursos desertos e carências eternas, é preciso garantir motivação e atratividade. Eu pergunto se isso acontece hoje com profissionais exaustos com o número de horas extraordinárias a que estão obrigados - não me parece.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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