Três despedidas e uma morte discreta

O que se conta a partir do que se diz.

“O ódio é cego, como o amor, mas o amor é criador e o ódio só destrói. Uma coisa é a paixão e outra o cultivo do ódio.” Discurso de despedida do senador uruguaio José Mujica

Índice Pepe

Ser político implica falar com as pessoas, ouvi-las e tentar suprir as suas necessidades. De outra forma, o político cristaliza-se na sua torre de marfim. José “Pepe” Mujica deixa a política porque não a compreende de outra forma que não seja no meio da gente e, hoje, com a pandemia e uma doença imunológica, ser infectado com o coronavírus seria muito provavelmente a sua sentença de morte. O ex-Presidente uruguaio decidiu, por isso, aos 85 anos, renunciar ao seu assento no Senado para o qual foi eleito e voltar à sua modesta quinta para tratar da terra. “Há um tempo para chegar e um tempo para partir na vida”, leu emocionado, “a vida vai-se-nos e é inevitável, mas as causas ficam”. O homem que passou mais de uma década na prisão em condições que enlouqueceriam muitos (veja-se Uma Noite de 12 Anos, de Alvaro Brechner) é obrigado a ceder. “Aconteceu-me de tudo na vida. Seis meses atado com arames nas mãos, dois anos sem que me deixassem tomar banho. Mas não odeio ninguém e quero transmitir aos jovens: há que agradecer à vida.” Pepe Mujica foi o Presidente que muitos nós gostávamos de ter e até quando parte sabe fazê-lo com a elegância de quem está condenado a ser eterno. O índice Pepe servirá para medir a qualidade de um político: quanto de Pepe tens tu?

Colónia

Um dos melhores discos de Keith Jarrett foi gravado ao vivo em Colónia em 1975. Colónia fica ali ao lado da cidade onde nasci e esse seria o último ano que lá vivi antes de ser enviado para Portugal para a escola. Aos cinco anos, não teria compreendido a música de Jarrett, embora esteja convencido, a esta distância, que esse dedilhar improvisado sobre as teclas, fazendo voos rasantes sobre as emoções, fosse já capaz de se imiscuir pelos alçapões dos mais desprevenidos. Esta semana, o pianista prolífico, em nome próprio ou em colaborações, explicou ao New York Times porque não se sabe nada dele desde 2018: sofreu dois acidentes vasculares cerebrais no espaço de poucos meses e ainda hoje tem o lado esquerdo parcialmente paralisado. O pianista de jazz que se aventurou também na música clássica, caminha agora com ajuda de uma bengala, mas demorou-lhe cerca de um ano para o conseguir e, mesmo assim, não caminha muito. “Não sei como será o meu futuro. Não sinto que seja um pianista neste momento. É só o que posso dizer.” Jarrett sabe que se recuperar a mão esquerda para poder segurar uma chávena já será um feito e nunca, mas nunca, voltará a ser o pianista de jazz que com o seu concerto de piano em Colónia mostrou que a improvisação pode ser a essência de um concerto.

Amor e um manguito

Claude Lelouch vai deixar o cinema e com uma última mensagem: o amor é melhor que a vida, tal como se vai chamar a sua quinquagésima longa-metragem, com Sandrine Bonnaire como protagonista. “Estou a preparar-me para me dirigir a essa palavra ‘fim’, vou e quero ir rindo, tenho vontade de ir a cantar, quero ir divertindo-me, sei que estou próximo”, afirmou o realizador ao Le Figaro. E como não podia deixar de ser, o opus final de Lelouch debruça-se sobre o tema que mais inspirou toda sua cinematografia, o amor, servindo como o fechar do círculo iniciado em 1961 com Le propre de l’homme, onde se contava a história de dois amantes em Paris segundo a perspectiva de um e de outro. Jean-Louis Trintignant, que protagonizou um dos mais famosos filmes de Lelouch, Um homem e uma mulher, também está no elenco para a despedida. Como referia esta semana o site N-3DS, a obra deverá incluir imagens filmadas pelo realizador, argumentista e actor noutras rodagens. Para o realizador de 82 anos, esta será também uma oportunidade para fazer um manguito aos críticos que o desprezaram: “Como acredito no cinema mais do que em qualquer outra coisa, antes de partir quero brincar e dizer adeus aos rabugentos que muitas vezes se sentiram zangados.” 

O terror que nos define

Gabo Ferro morreu discretamente. O músico, historiador e poeta argentino sucumbiu a um cancro, mas “além do seu círculo mais íntimo, poucos sabiam que estava doente e a notícia, além de surpreender, despertou a dor, a admiração, a incredulidade”, escreveu Mariana Enriquez no diário Página/12. A notícia deixa-nos o corpo cheio do formigueiro da mortalidade, mais ainda para quem tem La aguja tras la máscara como companheiro quase permanente nos últimos anos, sobretudo essa admirável canção que abre o disco de 2011, Lo que te da terror, onde Gabo canta: “O que te aterroriza/ define-te melhor”. A jornalista relembra no seu texto o primeiro disco a solo (em 2005, depois de sete anos do fim dos Porco), um disco que era uma afirmação de identidade, como homossexual, como poeta (e admirador de Artaud), como historiador: Canciones que un hombre no debería cantar. “Uma guitarra bela e triste, depois a surpresa da voz e a enumeração: o narrador olhava a sua casa, as suas coisas, um inventário da companhia e da ausência”. Gabo Ferro deixou-nos tal como um dia colocou um ponto final na sua carreira com os Porco num concerto na Alemanha, pousou o microfone gentilmente no chão e saiu. “Não te assustes, não serve, não te escapes, volta”, continuava Lo que te da terror.

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