“O Estado não tem estado à altura do Pinhal de Leiria”

Volvidos três anos do grande incêndio no Pinhal de Leiria, o presidente do Observatório Técnico Independente dos Incêndios refere “falhas importantes” ao nível da “governança” da mata nacional, “falta de monitorização aprofundada” e lacunas na “articulação entre o ICNF e as entidades locais”. Propõe a criação de um “plano de gestão a 50 anos”, que pode ser “replicável noutras matas” do Estado.

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Adriano Miranda/Arquivo Público

O Secretário de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território, João Paulo Catarino, participa na tarde desta quinta-feira, 15 de Outubro, na Marinha Grande, na reunião pública do Observatório Local do Pinhal do Rei, na qual será apresentado um plano de acção, “a executar nos próximos anos”, na Mata Nacional de Leiria (MNL), mas isso não apaga as “falhas na gestão” e a “monitorização claramente insuficiente” a que foi votado Pinhal de Leiria nos últimos três anos.

O Observatório Técnico Independente dos Incêndios, criado pela Assembleia da República em Agosto de 2018, também entrega hoje no Parlamento um estudo técnico denominado “Recuperação da Mata Nacional de Leiria após os incêndios de outubro de 2017”. Incêndios esses que deflagraram a 15 de Outubro de 2017 e “queimaram cerca de 85% da sua superfície”, a que se juntou “o impacto do furacão Leslie”, um ciclone tropical atlântico formado a 22 de Setembro de 2018, atingindo Portugal continental a 13 de Outubro (o mais forte desde 1842) e que “teve na Mata Nacional de Leiria uma das zonas mais atingidas”.

O presidente do Observatório é lapidar. Em declarações ao PÚBLICO, Francisco Castro Rego lamenta, acima de tudo, “uma fragilidade muito grande” na “governança e na gestão” da Mata Nacional de Leiria após o fogo de 2017. Assim como o facto de não haver “uma monitorização mais trabalhada e aprofundada no que respeita ao potencial de regeneração natural das áreas em que os pinheiros [queimados] regeneraram e daquelas que não regeneraram”.

Não falando nas “plantas invasoras a entrarem” no Pinhal do Rei, que, diz, “precisavam de ser anuladas rapidamente”. O estudo técnico deste observatório, a que o PÚBLICO teve acesso, refere as lenhosas, “essencialmente nove espécies de acácias identificadas”, mas, também, “duas espécies de háqueas e, ainda, a robínia”, para além das “invasoras não lenhosas terrestres”.

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O Observatório Independente entrega hoje um estudo técnico muito crítico do trabalho realizado. Francisco Castro Rego aponta “uma fragilidade muito grande” na “governança e na gestão” da mata após o fogo de 2017. daniel rocha

OE2021 não prevê verbas para a MNL

O mesmo documento faz notar que, em 28 de Julho último, a Assembleia da República, através da Resolução n.º 50/2020, recomendou ao Governo que “aprove planos de requalificação e reflorestação das matas e perímetros florestais litorais ardidos em 2017, em particular da Mata Nacional de Leiria, bem como os respetivos planos de gestão florestal”.

Uma recomendação que incluía “aspetos diversos” do processo de recuperação da MNL. Entre eles, a aprovação, dentro de seis meses, de planos de requalificação e reflorestação das matas do litoral ardidas em 2017; a aprovação dos primeiros planos de gestão florestal das matas e perímetros florestais litorais baseados num “processo de participação pública, dinâmico e integrador, em cada um dos planos aprovados”; a criação de “uma estrutura orgânica de acompanhamento à reflorestação, recuperação, valorização e gestão da Mata Nacional de Leiria que integre autarquias locais, o movimento e as forças vivas da região, em articulação com o alargamento e revitalização do Observatório do Pinhal de Leiria”; a “capacitação do ICNF [Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas]” com os “meios financeiros e humanos necessários”; e o “reforço de verbas para o Programa de Investimentos do ICNF 2018-2022 e um reforço no orçamento do Estado para 2021 para os investimentos necessários”.

Nada disso está ainda implementado. E da proposta de Orçamento do Estado para 2021, entregue esta semana no Parlamento pelo ministro das Finanças, que deverá ser votada a 28 de Outubro, não consta qualquer menção à Mata Nacional de Leiria ou sequer estão previstas verbas específicas a afectar à recuperação do Pinhal do Rei.

Rearborização de apenas 1483,41 hectares

Até ao final da época de plantação do corrente ano, segundo informação disponibilizada pelo ICNF ao Observatório Técnico Independente dos Incêndios, “foram instaladas mais de 1,3 milhões de plantas de 22 espécies florestais, desde ripícolas a espécies arbustivas e arbóreas, muitas delas espécies pioneiras”.

Estas operações de rearborização, refere o Observatório no seu estudo, “não se podem desligar das restantes matas litorais, e abrangem uma área de 1483,41 hectares [numa superfície total de 11.021 hectares da Mata], distribuídas por 47 talhões”. Lá se preconiza a instalação de pinheiro-bravo em 1298,2 hectares, de pinheiro-manso em 47,86 hectares e povoamentos misto de pinheiro-manso, medronheiro e sobreiro em 137,47 hectares, a que corresponde um total de 2 159 817 plantas.

O ICNF respondeu às questões colocadas pelo Observatório Técnico Independente dos Incêndios, indicando que, “através de observação visual, foram delimitados 1777 hectares de áreas florestais com capacidade para regeneração natural do pinheiro-bravo”.

Todavia, “este valor corresponde apenas a cerca de um quarto da área da Mata percorrida pelo fogo”, lê-se no documento do Observatório entregue ao Parlamento, sendo que, para a estrutura a que preside Francisco Rego, “a possibilidade de adoptar modelos de repovoamento nas zonas arenosas com pinheiro-bravo, mas, simultaneamente, com pinheiro-manso, deve ser estendida”. Isto para evitar a “composição de monocultura” que o pinheiro-bravo ocupava antes.

Para o Observatório dos Incêndios, “a produção de pinheiro-manso é fácil de realizar por via seminal, bem como a conservação da semente para posterior utilização nas épocas apropriadas de sementeira”. Para além de que “a importância económica do pinhão e a diversificação da paisagem” são “elementos adicionais importantes a considerar”.

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Segundo informação disponibilizada pelo ICNF ao Observatório, “foram instaladas mais de 1,3 milhões de plantas de 22 espécies florestais, desde ripícolas a espécies arbustivas e arbóreas, muitas delas espécies pioneiras”. adriano miranda

Plano de gestão a 50 anos

Feito o diagnóstico e identificadas estas falhas, o Observatório dos Incêndios sugere “que se altere o modelo de gestão” da Mata Nacional de Leiria e que seja “privilegiada a articulação com os poderes locais, nomeadamente as autarquias”.

Para tal, deve ser criada “uma entidade gestora, extensível a outras matas do litoral”, de cariz público, “com uma maioria de participação conjunta de organismos do Estado central e autarquias locais, sem que nenhuma destas entidades tenha isoladamente a maioria da participação”.

Também devem ser “reforçados os recursos humanos e técnicos do ICNF afetos à MNL”, assim como devem ser “reinvestidas” as receitas – “entre 10 e 11 milhões de euros” – obtidas pelo Estado com as vendas do material lenhoso após o incêndio de 2017. “É justo que a riqueza que foi criada no Pinhal seja utilizada na sua recuperação”, realça Francisco Rego ao PÚBLICO.

O presidente do Observatório fala na necessidade de um novo plano de gestão florestal para a mata de Leiria, com “um horizonte de 50 anos, porque as florestas têm de ser pensadas com esta perspectiva”, o qual possa desenvolver “um trabalho que vá ao encontro das expectativas do país”.

A revisão do Plano de Gestão Florestal da MNL é “da maior urgência” e é “uma oportunidade para reavaliar os conceitos, funções e objectivos, ordenamento e gestão das matas nacionais litorais, ajustando-as às expectativas da sociedade e condições biofísicas actuais, após os trágicos acontecimentos de 2017”, lê-se no estudo do Observatório. É, aliás, “igualmente, uma oportunidade para melhorar processos participativos de gestão pública com o envolvimento activo da sociedade”.

Poder-se-á dizer que o Estado está a defraudar as expectativas das populações locais e do país?, perguntámos a Francisco Castro Rego. “Sim, [o Estado] não tem estado à altura” da Mata Nacional de Leiria, respondeu.

Devolver as expectativas ao país

Para que se devolvam estas “expectativas” às populações e ao país, o Observatório dos Incêndios considera que, “à semelhança do que já sucedeu em espaços de significativo património florestal e histórico, deve ser criada uma entidade gestora da Mata Nacional de Leiria”.

Poderá “revestir formas diversas, nomeadamente cooperativa de interesse público, sociedade ou fundação”. Deve, contudo, reunir uma série de características, a começar pelo património, que “continuaria propriedade do Estado português”. “Deverá ser equacionada a criação de uma entidade gestora do património florestal, natural e histórico, com uma maioria de participação conjunta de organismos do Estado central e autarquias locais sem que nenhuma destas entidades tenha isoladamente a maioria da participação” – entidade essa que “deve incluir instituições de cariz científico e organizações da sociedade civil, em particular interessadas na conservação da natureza e do património histórico”, e “deve dispor de completa independência técnica, administrativa e financeira e dedicar as suas receitas à conservação, gestão e melhoria do património”. Devem, também, “ser reforçados os recursos humanos e técnicos do ICNF afetos à MNL”. Nesta fase de recuperação, “a entidade gestora deve ser dotada com as receitas obtidas pelo Estado com as vendas do material lenhoso após o incêndio de 2017”.

Questionado sobre que salto qualitativo será possível dar se o Governo acolher estas recomendações do Observatório Independente dos Incêndios, Francisco Rego apenas diz: “Este é um estudo técnico bastante aprofundado e com propostas muito trabalhadas e muito consensualizadas.” O produto deste estudo “pode ser muito útil”. Aliás, mais do que isso: “Pode ser replicável nas outras matas” do Estado.

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