Palavras

Recentemente, sem intenção e apenas por aliteracia da distracção, a senhora ministra da Saúde recorreu na prática de usar o termo “autista” para qualificar métodos de governo que apenas, a ocorrerem, seriam incompetentes. Tanto quanto sei, ficou a faltar o pedido de desculpa da ministra pelo erro grosseiro.

No dia 10 de outubro comemorou-se o Dia Mundial da Saúde Mental. “Comemorou-se” é a expressão que me parece mais adequada, porque haver saúde é motivo de celebração. Como é motivo de congratulação coletiva lembrarmo-nos de um dos grupos de doenças que mais contribuem para a perda de saúde e qualidade de vida, desculpem-me o pleonasmo, a nível mundial. A propósito do dia mundial da consciencialização do autismo, em 2 de abril de 2014, fiz publicar no sítio do Ministério da Saúde uma pequena nota. Repito parte do que lá estava.

“Está na hora de todos nós melhorarmos a nossa linguagem. O uso sistemático e recorrente da palavra ‘autista’ ou ‘autismo’, na definição de comportamentos políticos ou de supostas atitudes políticas, tem de ser banido do léxico do linguajar comum dos nossos comentadores, deputados, autarcas, governantes, etc. Não é aceitável o recurso a um termo de caracterização médica para categorizar a política. Ofende pessoas doentes, pessoas diferentes e as suas famílias. Um autista é uma pessoa com qualidades próprias que não a torna inferior a mais ninguém.

Da mesma forma que chamar alguém de esquizofrénico não é aceitável, tal como dizer que há comportamentos esquizofrénicos ou de outra índole psicopatológica, é incorreto e injusto para todas as pessoas afectadas com doença mental.

Há uns anos, num excesso de linguagem, disse (em Comissão de Saúde) a uma Senhora Deputada da oposição que não deveria estar ‘ansiosa’. Fui, pela própria, chamado à atenção de que não deveria ter usado um termo de caracterização psicológica. É verdade, não devia. Ainda para mais, sendo médico. Reconheci o meu erro e pedi desculpa.

Se é verdade que não é aceite chamar a outro de ‘imbecil’, ‘idiota’, ‘oligofrénico’ ou ‘cretino’, tudo terminologia médica com significado nosológico preciso, então o ‘autista’ e o ‘esquizofrénico’ também devem ser completamente eliminados de crónicas, discursos, intervenções, comentários e dichotes que só minimizam quem os prefere.

A consciencialização, no que à saúde mental diz respeito, começa por não ser leviano no uso da terminologia. Começa por pensar e sentir o que as palavras podem significar, em particular para quem sofre delas, com elas e por causa delas.”

Recentemente, sem intenção e apenas por aliteracia da distracção, a senhora ministra da Saúde recorreu na prática de usar o termo “autista” para qualificar métodos de governo que apenas, a ocorrerem, seriam incompetentes. Não faltou quem a admoestasse, quem lhe lembrasse que há autistas altamente funcionais, sem defeito nem doença. Tanto quanto sei, também ficou a faltar o pedido de desculpa da ministra pelo erro grosseiro. Não é costume de quem agora nos governa pedir a absolvição de falhas, mesmo que involuntárias. É um estilo.

Mas o que conta é a reflexão a que as palavras nos levam. Os nomes das doenças ou perturbações mentais não são insultos, não definem pessoas, nem práticas. São problemas preveníveis e tratáveis. Não me consta que ser diabético ou asmático possa ser razão para discriminação negativa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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