O sentido político da amizade

Política não é apenas eleições. Pode ser também a criação de novos modos de vida através da amizade.

Não deixa de ser surpreendente ver alguém discorrer sobre desigualdades, pobreza, problemas ambientais, crise da democracia, esgotamento dos paradigmas financeiros, racismo, disfunções das redes sociais, enfim, alguns dos desatinos do nosso tempo, e não ouvir em nenhum momento as palavras neoliberalismo ou sistema capitalista. É preciso ginástica para observar o elefante aos pulos no meio da sala e fingir-se que não se o vê.

Mas é isso que acontece. A não ser o Papa Francisco – vale a pena ler a nova encíclica – e alguns pensadores livres, não existe muita vontade de questionar estruturas. A macropolítica é uma chatice. É complexa. Difícil de comunicar. E não resolve o imediato. Daí que impere a politiquice. O mudar para nada mudar. A gestão das circunstâncias. O deixar andar.

Diz o Papa para não esperarmos nada de cima. E não é de Deus que fala. É dos que estão no topo da pirâmide social e proclamam que só existe um caminho, o que eles seguiram, para resolver os impasses colectivos, sem que por um segundo concebam que são necessários outros princípios económicos, renovados consensos sociais, reescrever as regras do jogo.

Desses, afirma, só se espera mais do mesmo, ou pior. “Comecem por vocês mesmos”, sugere. “É possível começar de baixo, de cada um, lutar pelo mais concreto e local, até ao último lugar do mundo.” Viremo-nos, pois, para a micropolítica e a dimensão afectiva das relações sociais.

Nesse campo, o amor romântico, e a vizinha paixão, são a verdadeira experiência de vida, tendemos a declarar. Conduzem-nos à transcendência e à idealização. Fazem-nos suspirar. Contamo-nos a partir dos amores e desamores. As narrativas de amizade, em comparação, ou são praticamente ausentes, ou pautam-se por serem mornas, uma boa conversa numa manta estendida na relva num fim-de-semana de sol.

A cambiante afectiva não contém os excessos trágicos ou as pulsões dos amores. Não se consulta o oráculo para saber quando se vai conhecer o amigo para a vida. É como se a amizade, ao contrário das relações amorosas, familiares ou de trabalho, não tivesse um programa emocional próprio. Não é estipulada por lei. A informalidade torna absurdas discussões sobre divórcio, assentimento ou contratos. Uma relação amorosa ou sexual também não tem de assumir forma legal, mas se existe área onde o sistema dominante tenta organizar afectos e desejos é esse. Já na amizade, a simetria relacional, a ausência de mercantilização e o território existencial, faz com que seja mais difícil de definir ou de sujeitar. Há mais fendas por onde é possível contrariar a captura da totalidade da vida pelo capital.

Nesse sentido a amizade pode constituir uma reinvenção de vínculos, a celebração da paridade, caracterizada por múltiplas identidades, onde o outro é entendido como extensão de nós mesmos. Um encontro de subjectividades que possibilitam a constituição de um “nós”. Um mundo onde apenas permanece o que se partilha. Se o individualismo ou a resignação podem ser formas de morte, a amizade é vida. Cultivar os amigos mais íntimos é essencial, mas é também possível procurar formas mais expansivas de amizade, numa trama de relações que podem multiplicar-se, inclusive com os que nos são menos próximos, produzindo novas ligações e projectos de convivência, resistindo colectivamente.

Política não é apenas eleições, disputa ou divisão de poderes. É também a construção de novos modos de vida, formas de estarmos juntos, alargando o político para todo o corpo social, fomentando a cultura do encontro, por mais desencontros que, inevitavelmente, possam vir a acontecer pelo caminho.

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