A ecologia das “mães”

A Terra é um sistema complexo que alberga vida, mas não é, em si mesma, um ser vivo. Muito menos um ser vivo pessoal, consciente, ciente, querente e capaz de empatia.

Tenho-me deparado com muitas pessoas a dizerem-se desconfortáveis por parecer haver cada vez mais cristãos a chamarem, de ânimo leve, “mãe” à Terra. Ao ouvi-las e (ou) lê-las, tenho-me recordado de G.K. Chersterton. Em diversos dos seus textos, este autor afirmou que tal apelação é o primeiro passo para um panteísmo de identificação e (ou) para diversas pseudo-religiões meramente cósmicas. Conforme pude recordar há poucas semanas relendo a Henri de Lubac, é evidente que a univocidade terminológica, mesmo no âmbito científico teológico, é geralmente uma ilusão. Todavia, isto não diminui uma certa compreensão pela mencionada apreensão, sobretudo no que ela poderia implicar, no limite, de uma deriva para uma incauta aceitação de formas alógicas, estereotiparas e gastas de paganismo e geolatria imanentista. Por isto, é-me grato saber que ninguém com dever educativo autoritativo na Igreja incorreu nesse resvalar.

É certo que há textos do presente cânone bíblico católico que se reportam à Terra mediante a designação de “mãe”. É igualmente inegável que diferentes textos cristãos optaram por seguir nessa linha, sobretudo nos primeiros séculos da era cristã e num lençol freático de difícil aferição do seu peso teológico. Porém, embora tais textos evidenciem o aludido uso, pude verificar que não enveredaram minimamente pela supramencionada deriva. Todos eles demostram, isso sim, que os seus autores tiveram sempre o cuidado de recusar linearmente qualquer ideia que os levasse, seja por esse deslizar, seja por hipérboles à la Arquelau de Atenas, Lucrécio ou, então, Dião de Prusa.

Tal como aqueloutros autores, os cristãos mais atentos de hoje sabem algo que é indiscutível. E sabem-no mesmo quando entusiasmados com as novas “profetisas” de Endor atormentadas por aquele mesmo cruento complexo metafísico que perseguiu a Lady Macbeth. Em concreto: sabem que à Terra falta-lhe algo de essencial para poder ser dita como “mãe” sem o uso, patente ou latente, de umas aspas que apontem, com força, para a analogia. Em concreto: um seu amor por nós; um seu realizar, sem ferir o nosso livre-arbítrio responsável, o que é genuinamente o nosso bem. Por mais que a Terra seja querida por Deus e estimada tal-qualmente por aqueles que amam a Este, a ponto destes reconhecerem que a mais tosca paisagem natural é sempre algo espesso em delicadeza, ela não nos bem-quer. Não creio que se possa ignorar que há mães e “mães”, há ir e não voltar. Também precisamos de ser ecológicos quanto a esta questão.

De facto, a Terra é um sistema complexo que alberga vida, mas não é, em si mesma, um ser vivo. Muito menos um ser vivo pessoal, consciente, ciente, querente e capaz de empatia. Esta asserção não é fruto de uma opinião emocional irracional, nem sequer de uma mera fé cristã que, numa entrevista a este jornal, foi identificada justamente com essa irracionalidade emotiva, em vez de se reconhecer que a mesma, pelo menos segundo o Cristianismo católico, é sempre o resultado de um assentimento bem discernido. Aquela afirmação é, pelo invés e na linha do apontado por Bernard Lonergan como sendo basilar para a honestidade intelectual, o resultado de uma postura atenta, inteligente, razoável e responsável.

Claro que, em consequência desse assentimento, um cristão, e com ele qualquer pessoa desprovida de feridas sisíficas a nível da percepção do sentido, pode afirmar, convictamente, que Deus ama igualmente através da Terra em tudo o que esta é diáfana ao Mesmo. Atrever-me-ia mesmo a referir que, desde esta óptica, se pode vislumbrar uma das mais ínclitas tarefas humanas: reconhecer que, tal como acontece com o ser humano, a Criação não está “atrás de nós”, mas “à nossa frente”. Ela está “aí”, aguardando que a façamos mais transparente ao Amor graças à nossa progressiva humanização. Uma humanização que, primeiramente em nós e depois em todas as demais criaturas, seja libertadora de todos os ecos meramente instintivos, passíveis de serem ditos mediante a evocação do conatus essendi espinosiano.

Eis nisto que acabamos de referir, e como garantiu Máximo o Confessor, o mais veraz entendimento do verdadeiro desapego cristão. Não o que levaria ao abjurar de uma Criação que, no dizer de C.S. Lewis, requere a nossa consideração atenta. Não. Jamais. Antes o de tudo se fazer de amorosamente admissível para que o criado seja, e seja em plenitude. E fazê-lo, de modo especial, através do entrarmos na esfera da generosidade que permite aquele amor da grandeza, pelo menos possível, de toda a realidade. Nada, pois, de encará-la como menos preciosa do que a excelência da sua passível meta no esplendor do Amor que Deus é. Toda e qualquer ecologia, mesmo a das “mães”, não pode ignorar isto, nem deixar de se interrogar seriamente se alguma teoria melhorou significativamente o valor das palavras genesíacas “no princípio, Deus criou os céus e a terra”.

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