A elite, os pais radicais e a Ordem da Liberdade

Quando o primado dos pais na educação dos filhos e a liberdade de consciência voltarem a ser compreendidos e respeitados por todos em Portugal, em especial pelo Ministério da Educação, será um grande dia.

Bárbara Reis, que muito considero, escreveu dois artigos intitulados “A elite e os pais radicais”, a propósito da disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” e do acontecido com duas crianças numa escola básica em Famalicão. Começou assim: “Um clube da elite portuguesa tomou partido pelo casal que luta para que os seus filhos possam faltar à disciplina Cidadania e Desenvolvimento sem chumbarem o ano lectivo.”

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Bárbara Reis, que muito considero, escreveu dois artigos intitulados “A elite e os pais radicais”, a propósito da disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” e do acontecido com duas crianças numa escola básica em Famalicão. Começou assim: “Um clube da elite portuguesa tomou partido pelo casal que luta para que os seus filhos possam faltar à disciplina Cidadania e Desenvolvimento sem chumbarem o ano lectivo.”

Refere-se ao manifesto “Em defesa das liberdades de educação” com várias dezenas de subscritores, entre os quais eu próprio. Sou, assim, da “elite”, embora – confesso – preferisse ser um dos “pais radicais”, pois são estes e os filhos os notáveis cidadãos desta história.

Facto muito curioso – sintomático –, nos artigos que apoiam a acção do Ministério da Educação, é ignorarem por inteiro o facto incontornável de o ministério ter levado o seu descoco ao ponto de ordenar a reprovação, por dois anos escolares, de duas crianças de 12 e 14 anos – um gesto de extremismo político, uma violência administrativa, que nunca vi em qualquer época, em Portugal ou qualquer país que conheça. Os artigos também ignoram a ameaça do ministério de sanções disciplinares sobre os professores da escola, que, por decisões unânimes dos conselhos de turma competentes, deram transição aos dois alunos no fim do ano lectivo de 2018/19. Nunca é demais ler, no processo, sobre os dois alunos, a síntese da apreciação – realmente conhecedora – dos seus professores: “pedagogicamente cada um reunia todas as condições de transição, uma vez que foi assíduo a todas as outras disciplinas, tem um excelente desempenho escolar, revela atitudes cívicas exemplares, tem sensibilidade e é solidário para com os outros, cumpre com todas as tarefas propostas, é responsável e revela integridade nas suas acções, é rigoroso no cumprimento de todas as actividades e é autónomo”. A intervenção de autoridade do ministério foi exercer o poder coercivo para serem reprovados estes dois alunos no ano lectivo de 2019/20 e também, retroactivamente, no de 2018/19.

Hoje, os alunos, é verdade, frequentam os 7.º e 9.º anos, como caberia nas suas idades e méritos. Mas não é por generosidade do ministério. Se a vontade do secretário de Estado tivesse sido cumprida, as duas crianças estariam a ser humilhadas pelo Estado e inscritas, naquela escola, outra vez nos 5.º e 7.º anos, recuando dois anos no percurso escolar e de vida, conforme despacho comunicado aos pais. Isto só não acontece porque a família reagiu judicialmente e foi o tribunal que, ao admitir a providência cautelar, atalhou a medida administrativa, permitindo aos alunos avançar. O secretário de Estado, dirigindo-se à apontada “elite”, escreveu, aqui, o seguinte: “a admissão de uma providência cautelar não significa que esteja deferida, como sabem os juristas signatários do manifesto”. Ou seja, o secretário de Estado continua, atrás das moitas, à espera de o processo judicial fracassar, para poder consumar o ministerial poder repressivo sobre aquelas duas crianças. Pior seria impossível.

A segunda omissão significativa, nos artigos em apoio do ministério, é ignorarem em absoluto os concretos direitos humanos deste caso. Os direitos esgrimidos por esta família são direitos humanos da mais alta dignidade, que não podem ser ignorados por qualquer burocrata, mesmo se poderoso. Direi mais: sobretudo se for poderoso. Esses direitos são mormente dois: o primado dos pais na educação dos filhos; e a liberdade de consciência.

Começo por esta. A liberdade de consciência é, no plano universal, uma das traves mais antigas dos “bill of rights” e da construção do constitucionalismo. Sobre ela se edificam várias outras liberdades e direitos. Nos artigos há um subtexto de desqualificação dos críticos, porque são “católicos”, ou “conservadores”, ou “jarretas”. Acrescentam mesmo “ultra”: os “ultra-conservadores” – um “ultrazinho” fica sempre a matar. Isto é ruído. Mas a Constituição e os textos internacionais de direitos não dispõem assim: “A liberdade de consciência é inviolável, excepto tratando-se de católicos, conservadores ou jarretas e, sobretudo, ultra-conservadores.” Se fosse assim, não havia liberdade de consciência. Porém, há – e é para todos. Alguém pensa diferente de mim? É para respeitar. Sobretudo o Estado, porque é a ele que são oponíveis os direitos, liberdades e garantias. A liberdade de consciência de quem quer que seja é inviolável.

Depois, o primado dos pais na educação. Bárbara Reis viajou até 1948 para circunscrever a interpretação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O contexto de adopção marca, é sabido, todos os documentos, o que não limita o seu valor e alcance. As normas valem plenamente em todo o tempo e no seu espaço, enquanto vigorem. Aliás, o preceito da Declaração Universal sobre o primado dos pais contém princípios intemporais de direito natural que surgem em todos os textos relevantes que conheço: Constituição portuguesa, Declaração dos Direitos da Criança, Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Convenção sobre os Direitos da Criança, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. É só ir ler. O ministério, todavia, ignora-o em todo o processo de perseguição destas crianças e seus pais, assim mostrando aos portugueses a incapacidade de orientar o ensino da cidadania. Como é que alguém ensina o que não conhece? Como pode alguém ensinar aquilo que viola todos os dias?

É chocante que as normas constitucionais e de direito internacional violadas, neste caso, pelo ministério, no caso inconcebível das crianças de Famalicão, são normas – imagine-se! – que constam dos próprios “Documentos de referência” da “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”, indicados nas páginas do portal internet do ministério. Isto só pode ser anedota. Ou talvez brincadeira de mau gosto, fazendo troça da cidadania, do seu conceito, da sua alma, do seu conteúdo. Uma ode à hipocrisia.

Quem são, afinal, os grandes cidadãos desta história? Quem é que mostrou saber o que é cidadania? São os pais de Famalicão, seus dois filhos e irmãos. Com valentia e simplicidade, conhecem as suas liberdades e defendem-nas. Afirmam-nas. Não se põem de cócoras, nem de rojo. Não ajoelham diante da injustiça e da intimidação. Não atacam ninguém: defendem o que é seu – a sua consciência, a sua personalidade. Grandes homens, grandes mulheres vão ser os filhos e as filhas daquela família. Grandes cidadãos de Portugal. São também grandes cidadãos os professores que, antes do rolo compressor do ministério, tiveram a honestidade profissional e a seriedade pedagógica de passarem ambos os alunos, pelo seu claro mérito escolar.

Por isso, eu queria ser um destes pais radicais ou dos professores de 2018/19. Porque todos são candidatos à Ordem da Liberdade – e eu também gostaria. Diz o diploma: “A Ordem da Liberdade destina-se a distinguir serviços relevantes prestados em defesa dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa da Liberdade.” É o que está em causa: valores da Civilização, dignificação da Pessoa Humana, causa da Liberdade.

Quando o primado dos pais na educação dos filhos e a liberdade de consciência voltarem a ser compreendidos e respeitados por todos em Portugal, em especial pelo Ministério da Educação, será um grande dia. Deveremos esse grande dia àquela família de Famalicão e àqueles professores em concreto, bem como a todos os que agirem como eles. Por mim, nestes casos, só consigo dizer: Obrigado.