Moria: precisamos de abanar a Europa pelos ombros

Subitamente, esses olhos entorpecidos escancaram, a sua respiração acelera, agita-se, levanta-se da cadeira e começa a gritar “Maman! Maman!”. Lágrimas começam a jorrar-lhe da cara e o alvoroço chama a atenção dos meus colegas de equipa.

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Reuters/ALKIS KONSTANTINIDIS

Moria ardeu. Não existe mais. Era o maior campo europeu de refugiados e requerentes de asilo e a “casa” para mais de 15 mil pessoas, dos quais centenas são menores não acompanhados – crianças sozinhas presas num pesadelo. No Inverno passado, estimavam-se cerca de 22 mil refugiados no campo. A capacidade do mesmo foi inicialmente avaliada em menos de 3 mil residentes.

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Moria ardeu. Não existe mais. Era o maior campo europeu de refugiados e requerentes de asilo e a “casa” para mais de 15 mil pessoas, dos quais centenas são menores não acompanhados – crianças sozinhas presas num pesadelo. No Inverno passado, estimavam-se cerca de 22 mil refugiados no campo. A capacidade do mesmo foi inicialmente avaliada em menos de 3 mil residentes.

Não vou escrever sobre a recente situação que deixou desalojados todos estes milhares de seres humanos em situações de extrema vulnerabilidade, que viviam em condições selvagens e hoje dormem à beira de quilómetros de estrada. Haverá, esperançosamente, dezenas de notícias nestes dias que melhor descreverão esta tragédia e as implicações futuras. Prefiro partilhar algumas das histórias das pessoas com que me cruzei. Histórias dos habitantes de Moria.

Como médico interno de cirurgia, fui no último mês responsável pela prestação de cuidados cirúrgicos urgentes e emergentes a menores desacompanhados dentro do campo. Feridas infectadas; pequenos traumas; severos casos de escabiose impetiginada; lesões mais ou menos graves devidas aos frequentes esfaqueamentos entre adolescentes que, cansados de se automutilar, ocasionalmente direccionam a sua raiva para o vizinho do lado; raparigas vítimas de violação nos seus países de origem ou durante a viagem e que, recém-chegadas ao campo, têm ali a primeira oportunidade de contar o que lhes aconteceu e de serem avaliadas psicológica e ginecologicamente.

Um destes dias apareceu-me na clínica o D., de 12 anos, vindo do Afeganistão. Tinha chegado há poucos meses ao campo, pelo que ainda não tinha conseguido lugar nos dormitórios construídos para acolher e, de alguma forma, proteger as crianças desacompanhadas. Dormia, assim, na “selva” – o nome dado aos montes de oliveiras em redor do perímetro do campo que acolhem já a maioria dos refugiados – sob uma tenda de lona que partilhava com desconhecidos. Contou-me que tinha havido um esfaqueamento na tenda ao lado da sua há uma semana e, desde então, o medo de ser ele mesmo alvo de um ataque não o deixava dormir. Na noite anterior, por esse motivo, deambulava no meio das oliveiras quando terá encontrado um pedaço de vidro partido. Pedia-me então que cuidasse das feridas que tinha infligido a si mesmo no braço esquerdo. Ao dar-lhe a mão para melhor inspeccionar o braço, parei dois segundos, tentando não esquecer a pequena mão, pousada na minha, com uma tatuagem amadora no dorso (frequentemente feitas entre os miúdos da “selva” para se entreterem) onde se lia “ALONE” (“sozinho”, em inglês).

Muitas organizações não-governamentais têm, ultimamente, adoptado a política de contratar refugiados para ocupar várias das posições necessárias ao seu funcionamento, maioritariamente em actividades de tradução e interpretação. Os refugiados vêem com entusiasmo esta oportunidade de contribuir para um melhor funcionamento do campo e, ao mesmo tempo, terem outra fonte de rendimento para além dos 75 euros mensais que lhes são atribuídos pela União Europeia.

Foi assim que conheci o S., de 28 anos. Sírio, formado em Engenharia Civil, trabalhou apenas um ano antes de ser chamado para cumprir serviço militar na guerra civil do seu país. Tinha um ano de treino pela frente antes de integrar as forças combatentes. Disse-me que nesse ano perdeu 20 quilos. Não conseguia dormir. Fazia treino de tiro com a convicção de que nunca aceitaria disparar sobre civis e com a certeza de que seria executado se desobedecesse a ordens superiores. Decidiu que tinha de fugir, correndo o risco de ser morto para não ter de matar. Fê-lo na sua primeira missão. Abandonou a arma e correu para longe do confronto. Queimou a farda das Forças Armadas Sírias e viajou como civil, usando falsa identidade. Se apanhado pelas autoridades sírias, seria morto. Se identificado como soldado sírio pela oposição, seria morto.

Teve sorte e, meses depois, chegado a Istambul, conseguiu contactar a família, que se lhe juntou e aos cerca de meio milhão de refugiados que vivem naquela cidade turca. Ali viu o seu pedido de asilo recusado, apesar do da sua família ter sido aceite. É uma prática comum. Separam-se famílias através da frequente recusa do pedido de asilo a um dos seus membros para desincentivar a migração. Seguro de que seria executado se repatriado, decidiu investir tudo o que tinha ganho a trabalhar em Istambul numa travessia ilegal. Contou-me ainda que o motor da embarcação onde fez a viagem ficou sem combustível a cerca de cinco quilómetros da costa de Lesbos. Ele e outros dois jovens saltaram para a água para tentar empurrar a embarcação que transportava 40 homens, mulheres e crianças, mas conseguiram apenas avançar 200 metros antes de desistirem pelo cansaço e pelo frio. Uma viagem que costuma durar entre uma a duas horas, durou nove, mas pelo menos a maré foi favorável e levou-os para o “lado certo” do canal.

Hoje ajuda no que pode no campo. O pedido de asilo já lhe foi negado uma vez pelas autoridades gregas e à segunda vez será deportado. Disse-me que não lhe interessa qual o país que o venha a acolher, mas sabe que não tem mais interesse em exercer a sua profissão (apesar de ter ajudado a construir a área de isolamento para doentes de covid-19, hoje em cinzas). Em vez disso, frequenta cursos online e faz-me reiteradamente perguntas sobre anatomia e fisiologia. Quer estudar para ser enfermeiro e ajudar as pessoas.

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Fui pela primeira vez voluntário no campo de Moria há dois anos, quando os residentes não chegavam ainda aos 9 mil, mas os recursos disponíveis já eram insuficientes. Água potável e medicamentos eram então motivo de desacatos e contrabando. As clínicas eram menos e a população chorava e gritava agarrada às vedações de arame farpado pela oportunidade de ver um médico. Nessa altura observei maioritariamente adultos.

Marcaram-me as palavras claramente envergonhadas de M., de 62 anos, professor universitário em Homs, na Síria. Preocupado por não tomar a medicação antidiabética e anti-hipertensiva desde que fugiu do país, diz-me entre esforçadamente contidas lágrimas: “Desculpe… Muito obrigado! Desculpe... Eu sou professor universitário, sabe? Nunca imaginei… Isto pode acontecer a qualquer um! Desculpe... Deus queira que nunca que lhe aconteça a si ou aos seus. Desculpe… Muito obrigado!”

Outra vez ainda entram-me dois jovens no pequeno consultório improvisado na metade de um contentor. Oriundo do Congo, A. tem 21 anos e é trazido em ombros por um amigo que fez na viagem, também do mesmo país africano. É este amigo que me conta que desde que chegaram ao campo têm tido muitos problemas.

Já durante a viagem as insónias e os ataques de pânico eram frequentes, mas desde que chegaram que A. tem estado pior. Durante todo o dia, mas principalmente à noite, tem episódios de gritos e agitação, com uma frequência que chega a ser a cada meia hora e que perturbam os outros 20 residentes do contentor que partilham, tornando A. alvo de agressões verbais e físicas pelo stress cumulativo que provoca nos demais. O rapaz apresenta-se em óbvio estado de fraqueza e não fixa o olhar.

Subitamente, esses olhos entorpecidos escancaram, a sua respiração acelera, agita-se, levanta-se da cadeira e começa a gritar “Maman! Maman!” (francês para “Mamã! Mamã!). Lágrimas começam a jorrar-lhe da cara e o alvoroço chama a atenção dos meus colegas de equipa. Neste momento, ele agarra-me pelos ombros e abana-me violentamente. Os seus olhos, agora vermelhos, fitam directamente os meus a apenas 30 centímetros de distância enquanto chama continuamente “Maman! Maman!”. Vários braços agarram-no e puxam-no para uma marquesa, enquanto tentamos várias técnicas para o acalmar. “Ma maman... Ils ont tué ma maman!” (“A minha mãe… eles mataram a minha mãe!”). Após dois ou três minutos, A. relaxa e adormece. Os parâmetros vitais estão estáveis e decidimos deixá-lo descansar um pouco. O amigo conta-me então, incomodado, que ouvira de um conterrâneo do meu doente que 11 meses antes a sua aldeia congolesa tinha sido atacada por uma milícia armada de ligações terroristas. Então com 20 anos, A. tinha sido violado enquanto assistiu à decapitação da mãe a poucos metros de si. Todos os dias, às vezes com apenas 30 minutos de intervalo, ele revivia esse momento.

Estes são os habitantes de Moria e estas são histórias que se repetem, apesar das caras e dos nomes variarem. Nada sabem sobre subsídios de apoio ou de integração deste ou daquele país. Têm smartphones, sim, porque tinham uma vida como a minha ou a do leitor antes de tudo isto. Não têm planos vis de invasão ou domínio religioso. O plano é apenas a sobrevivência desesperada, que os atira a eles e aos filhos para um barco que lhes oferece uma elevada probabilidade de morte, mas apenas porque a guerra, os abusos e as carestias que para trás deixam se lhes apresentam ainda mais fatais. Uns movidos pela sua vontade própria, outros levados em braços. Caminham quando podem e nadam quando são obrigados. Esperam desesperadamente que alguém lhes diga: “Acabou. Podes respirar. Estás em segurança. Tu e a tua família vão ficar bem.” Eu nunca pude dizer essas palavras a ninguém. Não ali, nunca naquelas condições.

Mas nunca mais somos os mesmos depois de abanados daquela maneira e naquele contexto. E é aí que percebemos: ninguém imagina sequer o que ali se passa. Na União Europeia, pouca gente sabe ou recorda o que é olhar a angústia espelhada na cara de quem fugiu de um filme de terror e acaba a viver no inferno. Espelhada na cara de milhares de pessoas, com milhares de histórias, semelhantes apenas no seu desfortúnio. Podemos ler muito sobre o assunto, mas não temos verdadeiramente ideia até sermos sacudidos pelos seus olhos e as suas palavras. E é por isso que precisamos de nos despertar uns aos outros para a situação que vitimiza milhares nesse muro sudeste da União Europeia.

Temos de nos agarrar uns aos outros pelos ombros, temos de agarrar a Europa pelos ombros, e abanar até não sobrarem dúvidas sobre o próximo passo: precisamos de evacuar imediatamente todas estas pessoas e desmantelar todos estes modernos campos de concentração, repartindo-as pelos Estados-membros, onde deverão aguardar a resolução dos seus pedidos de asilo em condições dignas e com apoio adequado, promovendo-se políticas de respeito e solidariedade. Porque, de facto, “isto pode acontecer a qualquer um”. E não assim há tanto tempo precisou e beneficiou este orgulhoso continente da ajuda dos avós daqueles que agora deixamos afogar nas nossas praias.

Nota do autor: o facto de todas as estórias partilhadas se referirem a indivíduos do sexo masculino reflecte, por um lado, a sua predominância na população do campo e, por motivos culturais e de protecção de vítimas em casos de vulnerabilidade, a tentativa de mulheres e raparigas serem preferencialmente observadas por profissionais de saúde também do sexo feminino.