A sociedade dos empregos de merda

As políticas que tornaram a vida e o emprego mais difícil para tantas pessoas produziram em simultâneo uma série de actividades inconsequentes e com regalias para muitas outras.

Há empregos de que ninguém gosta, duros, mal pagos, não reconhecidos, mas que alguém tem de fazer porque são essenciais para a vida colectiva. E há-os bem remunerados, com benefícios, validados socialmente, mas que pouco contribuem para o bem comum, sendo que quem os executa tem muitas vezes consciência de que são supérfluos. Os últimos são “empregos de merda”, segundo a provocatória definição de David Graeber, o professor, antropólogo, ensaísta e activista, falecido há alguns dias.

Nos últimos meses havia-se desdobrado em entrevistas e o livro Trabalhos de merda: uma teoria (2018), resultante de um ensaio de 2013 onde desconstruía a idealização que as sociedades ocidentais fazem do trabalho, foi alvo de renovado interesse, pela discussão em torno do rendimento mínimo garantido ou das jornadas de trabalho mais curtas, mas foi a pandemia que revelou que algumas das suas teorias são espaço para o questionamento. O confinamento mostrou que certas actividades são essenciais para vivermos (empregos produtivos que implicam fabrico, transporte, entrega, reparação ou manutenção, bem como cuidadores, profissionais de saúde, etc) e outras foram vitais para nos fazerem sentir vivos (cultura, artes, humanidades, ensino, comunicação). A questão, para Graeber, são as actividades intermédias, muitas delas de administração ou supervisão, que terão crescido exponencialmente nas últimas décadas, sem que se vislumbre uma razão lógica – administrativos, gerentes de fundos de investimentos, accionistas, consultores, especuladores, oficiais de justiça, conselheiros jurídicos, serviços financeiros, telemarketing, direito empresarial ou recursos humanos.

No livro, depois de interrogar centenas de profissionais sobre o grau de satisfação, contributo para o bem comum ou a forma como ocupavam o tempo, foi nessas áreas que encontrou mais paradoxos, acabando a discutir a existência e os danos sociais e psicológicos de empregos sem sentido. Uns declararam-se infelizes com o trabalho, argumentando que aquilo que auferiam era a sua única motivação, havendo muitos casos, por exemplo, de abandono frustrante da carreira de professor, para o preenchimento de relatórios que ninguém lê, numa qualquer organização. Muitos declararam que aquilo que faziam era inútil. E outros assumiram que passavam o tempo a tentar mostrar serviço, mesmo tendo consciência da inutilidade do mesmo.

O resultado é profissionais de outras actividades (no ensino, investigação, saúde) perderem tempo precioso com burocracia porque nos níveis intermédios existe quem tenha de justificar a sua ocupação. Porque é que isso acontece? Não é apenas oferta e procura. Há motivações económicas e políticas, da ordem da complexidade sistémica, mas também morais. A idealização do trabalho, enquanto valor em si mesmo, da produção e do consumo. A ideia de que a criação de empregos é sinónimo de prosperidade. Por outro lado, muitos empregos produtivos foram automatizados, mas em vez da redução do tempo de trabalho, o que se assistiu foi a um aumento dos empregos administrativos em sentido amplo. E há também mecanismos de controlo. Dividir para reinar. Criar postos de trabalho que se identifiquem com as visões e valores das classes dominantes, ao mesmo tempo que se promovem ressentimentos contra os que têm um trabalho de valor social inegável – não é a isso que se vislumbra quando existem manifestações de enfermeiros ou professores?

E aqui estamos. Quanto mais útil é o trabalho, mais mal pago é, parece ter sido o ensinamento do confinamento, segundo Graeber, com óbvias excepções, como os médicos. As políticas que tornaram a vida e o emprego mais difícil para tantas pessoas produziram em simultâneo uma série de actividades inconsequentes e com regalias para muitas outras. Antes de morrer, alertou para o facto de o mundo não ter aprendido nada com a crise de 2008, não sendo capaz de perceber quais os empregos sistemicamente mais importantes e os mais irrelevantes. E agora?

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