O Manifesto contra a Cidadania, de João Costa

Se na minha vida me acontecesse uma coisa desta gravidade, isto é, ter sobre terceiro uma reacção destemperada perante um desafio ao meu poder, eu provavelmente morreria de vergonha e de remorso, se não o pudesse reparar. Não o desejo ao secretário de Estado João Costa. Creio que é preciso que viva com esta vergonha.

O secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa, escreveu, há dias, o texto “A Cidadania não é facultativa”, dirigido fundamentalmente contra o documento “Em defesa das liberdades de educação” e aqueles que o assinaram. Sou um destes.

O seu texto é um Manifesto contra a Cidadania. Não só por o dirigir contra um exercício de cidadania activa pelas liberdades de educação, mas pela narrativa distorcida da perseguição à cidadania livre e responsável exercida na área do seu ministério. Enfim, também pelo modo como, junto com os prosélitos, descarta direitos fundamentais dos cidadãos e suas implicações.

O título mostra o fútil prazer da desconversa: a frase “A Cidadania não é facultativa” nada tem a ver com a questão em discussão. É outra farolada das muitas em que a esquerda radical e a extremista têm sido férteis neste debate: proclamações pomposas, mas que nada dizem ao problema, nem à solução. Ninguém questionou a cidadania, antes a disciplina obrigatória no ensino básico chamada “Cidadania e Desenvolvimento”, o que é muito diferente. Porém, por falar nisso, se a questão for sobre a cidadania ser facultativa ou obrigatória, a resposta só pode ser uma: facultativa, opcional. Quem quer cidadãos livres, reconhece-lhes a faculdade de escolher: agir ou não agir, e como agir. Nas sociedades de liberdade, a cidadania é obviamente facultativa, correspondendo às escolhas individuais – e funciona. Nas sociedades autoritárias, a cidadania pode ser ou proibida, ou obrigatória – e falha. É para este mundo retrógrado que este Ministério da Educação nos empurra. Cidadania é liberdade. Sempre.

Todos os textos legais, constitucionais e internacionais citados no abaixo-assinado “Em defesa das liberdades de educação” fazem parte do nosso Bill of Rights, direitos fundamentais que o Estado não pode ofender, nem atropelar. O Estado tem o imperativo de os respeitar e fazer respeitar. Sua Enormência, o secretário de Estado, fez o contrário: ignora, omite, não respeita e manda não respeitar. Esses textos constam, aliás, dos “Documentos de referência – Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” e dos “Documentos internacionais de referência”, emoldurados online pelo ministério, o que só confirma a farsa que anda a montar e a sua ignorância e total incapacidade no tema.

O caso de Famalicão é um caso prático de cidadania. De um lado, temos uma família e dois filhos, que exercem verticalmente a sua cidadania: conhecem os seus direitos, afirmam-nos e querem fazê-los valer. Do outro, temos governantes e um ministério às ordens, que trucidam lei, Constituição e declarações internacionais vinculativas, em escandalosa ofensa de direitos humanos, indo ao ponto de punir duas crianças com a reprovação por dois anos. A Convenção sobre os Direitos da Criança, também no cardápio da “Educação para a Cidadania”, dispõe, por exemplo: “Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.” Como enquadra o governo nesta norma a sua conduta de chumbar, neste caso concreto, as duas crianças?

Bem sei que o secretário de Estado diz: “Não fui eu”. É mentira: foi ele! Compreendo que, face ao carácter infame do que fez fazer a duas crianças e uma família, queira esconder a mão depois de atirar a pedra. É a coragem usual deste modelo dirigente. Devia publicar as 35 páginas de torcida argumentação burocrático-normativa com que a família foi ameaçada em Fevereiro, mais as três do fuzilamento administrativo em Junho, para o país poder ler como foi cercada e perseguida uma família e punidos os seus filhos, em violação flagrante da lei e dos direitos fundamentais – um vil atentado contra a cidadania.

No Castelo Infante Santo, o visconde de Alcântara é finório: não suja as mãos. Tem quem o sirva cegamente. O processo narra como, digerindo as notícias do controlador-geral Luís, na execução das instruções anteriores do próprio visconde, a fiel aia Filipa desenhou o plano de tiro e armou o bacamarte, para que o visconde, ao concordar, ordenasse – “Dispare-se!” –, comunicando-se, depois, ao corregedor João Miguel o cerco final ao inimigo e, finalmente, ao feitor local Carlos Alberto a consumação do disparo mortal: chumbados! Por ordem superior, atento, venerador e obrigado.

É pura sonsice e hipocrisia o governante murmurar que se condoeu das crianças e não quis a reprovação. Está tudo escrito. A “alternativa” indicada antes da execução final foi para família e crianças se ajoelharem, acatando tudo quanto se lhes ordenasse. É coerente com a posição deste ministério sobre a cidadania. O Castelo Infante Santo professa a crença de que a cidadania consente duas posições (a de cócoras e a de rojo), a que, em caso de necessidade, pode acrescentar-se uma terceira (a de joelhos), devendo tudo embrulhar-se na sábia doutrina do culambismo, imortalizada por Miguel Esteves Cardoso na nossa literatura. Este ministério é inteiramente incompetente para ensinar cidadania, porque não sabe o que é. É até perigoso que use a palavra, enquanto não aprender, porque lhe retira dignidade.

Houve atitudes mais moderadas no quadro do ministério, que o secretário de Estrado ignorou ou mandou estraçalhar. Os serviços adiantaram a possibilidade de consentir a “validação, a título excepcional” da transição de ano 2018/19, deixando passar o prazo de um ano sem anular a decisão da escola – esta consolidar-se-ia. Mas, para o governo, imperou chumbar os alunos retroactivamente. E houve a avaliação sábia dos professores, que, tudo ponderado, decidiram a passagem de ano. O conselho de turma, por unanimidade, escreve sobre estes alunos: “pedagogicamente cada um reunia todas as condições de transição, uma vez que foi assíduo a todas as outras disciplinas, tem um excelente desempenho escolar, revela atitudes cívicas exemplares, tem sensibilidade e é solidário para com os outros, cumpre com todas as tarefas propostas, é responsável e revela integridade nas suas acções, é rigoroso no cumprimento de todas as actividades e é autónomo.” Releiam bem, por favor. É preciso uma absoluta falta de vergonha – e também de humanidade – para fazer reprovar por dois anos seguidos duas crianças de 12 e 14 anos com estes atributos.

Ainda por cima, a forma como o conselho de turma foi removido do processo é muito eloquente sobre este ministério. Havia um conflito de normas jurídicas: uma, usada pelo conselho de turma, permitia-lhe a avaliação pedagógica de fim de ano e, portanto, a decisão de transição; outra, esgrimida pela hierarquia superior do ministério, determinava administrativamente o chumbo por faltas. Não entro, aqui, na longa apreciação jurídica feita no processo. Retenho que, sem pestanejar, o ministério, num caso de dúvida, preferiu a norma punitiva à norma salvadora; preferiu o seu poder central ao saber de proximidade dos professores na escola; preferiu a medida administrativa à avaliação pedagógica. Diz tudo sobre este Ministério da Educação vê-lo alçar o cutelo administrativo para esmagar o critério da pedagogia. Ainda por cima, a norma aplicada só coube àquele caso mercê de interpretação extensiva! E, em nenhum momento, o conflito das duas normas foi examinado à luz da conformidade com a Constituição. Em todo o processo, a questão dos direitos humanos fundamentais dos pais e das crianças nunca é examinada, antes completamente ignorada – só se fala do entendimento e do poder do ministério.

Espreita, por ali, a terrível assombração de “um grave precedente. Mais: por extenso, “a aceitação/passividade perante tal atitude poderá legitimar condutas semelhantes.” Oh! Que horror… Por isso, os rapazes apanharam pela medida grossa – para ninguém se pôr com ideias subversivas. A escalada ameaçadora é, até, mais vasta na sanha do processo, apontando a mais sanções sobre pais e professores. A ordem é para punir, meter medo. Contra a cidadania, contra as responsabilidades profissionais dos professores, contra as responsabilidades institucionais e comunitárias de cada escola. Uma filosofia de susto. O “precedente” é o pavor de todos os ditadores. Quando os cidadãos afirmam direitos e liberdades, nasce a angústia do tirano: E se eles se habituam?

Se na minha vida me acontecesse uma coisa desta gravidade, isto é, ter sobre terceiro uma reacção destemperada perante um desafio ao meu poder, eu provavelmente morreria de vergonha e de remorso, se não o pudesse reparar. Não o desejo ao secretário de Estado João Costa. Creio que é preciso que viva com esta vergonha.

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